quinta-feira, maio 22, 2014

Eu, Cláudio... nem imperador manco nem pai ausente; simplesmente eu.

21 de maio de 2014 às 17:55



Em 1972, quando minha mãe pronunciou meu nome no mundo, ela achou por bem que eu fosse chamado de Cláudio. O mesmo nome pelo qual era chamado o meu pai. Mas, segundo ela, o meu nome tinha mais a ver com o do senador romano conhecido por Tibérius Cláudius, feito imperador entre um assassinato e outro, por manter-se à margens - ou à sombra - das disputas grandiosas entre Júlios e Césares... estando num pequeno espaço - como se diz lá onde eu nasci: num "imprensado" entre  Calígula e Nero.
O fato de meu pai se chamar Cláudio (como aliás, também se chamava o pai do imperador), na versão de minha mãe, era mera coincidência. Há quem tenha motivos para duvidar, mas minha mãe tinha uma queda pelo teatro e o tal imperador já era conhecido (bem mais que o meu pai) de um romance literário publicado em 1934, tão famoso que virou série da BBC em 1976  (quando eu já tinha 4 anos, portanto não corrobora propriamente a versão materna, mas demostra que o personagem era bem conhecido). A primeira imagem que tive do imperador Cláudio, me veio em uma cena de algum filme (Calígula?) na qual ele se espremia assustado entre a morte de um imperador e a ascensão de outro.

Encontrei o livro [Eu, Claudius, imperador - de Robert Graves] numa biblioteca popular- A Sala de Leitura Gilberto Freyre, mantida na época por um vereador de Recife (Prof. Rafael de Meneses?). Mas não terminei de ler... acho que não gostei de saber que por conta de um dos defeitos do imperador, o nome Cláudio estava associado ao verbo claudicar - que significa pisar em falso, mancar, coxear. A propósito, há referências sobre um outro Cláudio, o coxo, na Bíblia mencionado como o homem que recebeu Maria e José no estábulo de sua estalagem na noite em que Jesus nasceu (curiosamente, há referências também ao fato de que antes de ser Imperador Tibérius Cláudius teria sido cuidado por um tratador de mulas). Mas, isso já é digressão.  Encontrei o meu pai [que não vivia com minha mãe] algumas vezes antes, durante minha infância e adolescência, mas a questão dos nossos nomes nunca esteve na pauta de nossas conversas. Se ele tinha aquilo como uma homenagem, não me pareceu nnca que se sentisse mais agradecido ou honrado. Nessas conversas eu, Cláudio, filho, levava mais em conta o fato de que havia mais distância entre mim e meu pai homônimo do que entre mim e o imperador manco.

Essa identificação com o Cláudius imperador gago, manco e medíocre, espremido entre Nero e Calígula, na medida em que refletia um sentimento de distância em relação ao meu pai, um eloquente jornalista, dirigente da Associação de Imprensa de Pernambuco, bem conhecido no meio jornalístico da sua época, esteve de certo modo no centro de minhas primeiras conversas com Ciro, o terapêuta que tive a felicidade de conhecer no curso de Psicologia da Federal de Pernambuco. Hoje, quando completo 42 anos  aquelas primeiras conversas me voltam à cabeça (crise da meia idade? - em tempos de internet essa crise deveriam vir por vota dos vinte, né?)

Essas conversas da terapia, por um tempo ao menos, giraram em torno da questão da ausência(?) de meu pai e da falta que ele não fazia, ou que eu não me permitia sentir, talvez graças à heróica presença da minha bisavó que foi - em termos winnicotianos, uma mãe suficientemente boa associada à presença forte e bem humorada de minha mãe. Meu pai, que tinha lá suas realizações e seus méritos, era menos importante pra mim que o tal imperador coxo que governou o imperio romano entre anos 40 e 50 d.C. (mais uma vez a dezena temerosa). O imperador que puxava de uma perna e gaguejava, além de ser inexpressivo entre os outros imperadores a quem ele sucedia e antecedia, me parecia uma influência pessoal mais negativa do que o meu pai, que além de ter mantido com minha mãe uma relação sem grandes compromissos, mantinha comigo uma relação de contatos ocasionais e um profundo distanciamento.

De qualquer maneira, era como se a mancada de meu pai fosse menos importante que a gagueira e claudicância do imperador para definir quem eu poderia ser. E esse desequilíbrio entre a importância das falhas de um imperador romano e a falta não experimentada de meu pai ausente, dava-se curiosamente num período de minha vida em que eu participava de um programa de extensão universitária voltado para promover o envolvimento de jovens pais com a gravidez, o parto e o cuidado de seus filhos, o Programa de Apoio ao Pai - que viria a se tornar a ONG Papai.

Nesse percurso, a terapia com Ciro - que não pretendo relatar em detalhes aqui - e a experiência de trabalho no Papai foram muito importantes para que eu elaborasse essa questão de um modo que acredito ter sido muito saudável. Para o imperador, para meu pai e, sobretudo, para mim.

Do imperador, que até pouco tempo, eu só sabia que era gago e manco, fiquei sabendo também que foi um estadista muito competente com um histórico de grandes realizações:

"Cláudio foi um brilhante estudante, governante e estrategista militar, além de ser querido pelo povo. O seu governo foi de grande prosperidade na administração e no terreno militar. Durante o seu reinado, as fronteiras do Império Romano foram expandidas, produzindo-se a conquista da Britânia. O imperador tomou um interesse pessoal no Direito, presidindo juízos públicos e chegando a promulgar vinte éditos por dia.(...)
"Cláudio demonstrou ser um administrador capaz e um grande promotor de obras públicas. Durante os treze anos do seu governo, o Império Romano assistiu à construção de numerosas obras públicas, tanto na capital quanto nas províncias." 
 "Cláudio preocupou-se especialmente do transporte. Construiu canais e estradas por toda a Itália e pelas províncias. De todos os canais destaca-se o que construiu do rio Reno até o mar e, quanto às estradas, foi muito importante a que ligava Itália e Germânia, ambas começadas pelo seu pai,"
 ...Um dos seus éditos mais famosos faz referência ao status dos escravos enfermos: Os donos abandonavam os seus escravos no templo de Asclépio para falecer, e depois reclamavam-nos se sobreviveram. Cláudio ditou que os escravos que se recuperassem desse tratamento ficariam livres. E mais, os donos que escolhessem matar o escravo em lugar de tomar o risco de abandoná-lo desse modo seriam acusados de assassinato.
(http://pt.wikipedia.org/wiki/Cláudio)

De meu pai - com quem, desde que posso lembrar, sempre mantive contatos raros e superficiais - guardei como relicário uma cópia autografada do único livro que ele chegou a publicar (na verdade, um catálogo publicitário com ficha técnica e contato de vários jornalistas atuando na imprensa pernambucana) e uma nota de obtuário publicada em 2001 na página "Vida Urbana" do site do Diário de Pernambuco, que diz o seguinte:

Jornalista sepultado em Santo Amaro (Edição de Segunda-Feira, 5 de Novembro de 2001)
Foi sepultado ontem, às 17h, no cemitério de Santo Amaro, o corpo do jornalista Cláudio Miranda. Ele trabalhou na redação do DIARIO DE PERNAMBUCO, na década de 80, e na mesma época atuou no Jornal do Commércio. No final da década de 90, o jornalista passou a ser editor de O Passageiro, um veículo de circulação bimensal, em tamanho tablóide, com linha editorial que funcionava como um elo entre população e Governo.
(http://www.old.pernambuco.com/diario/2001/11/05/urbana6_0.html)

O tablóide mencionado na nota foi um projeto que ele chegou a partilhar comigo. Lembro de rabiscar uma ilustração para a primeira edição. Que não cheguei a ver finalizada. Mas fiquei feliz ao saber que o projeto estava em desenvolvimento.

De mim mesmo, com quem tenho mantido contatos frequentes de quem procuro estar sempre muito próximo, guardo imagens mais ou menos certas e também equivocadas. Sei de meu currículo e de minha vida. E sei que esta última não se resume àquele outro. Sei dos mitos que me fazem querer e temer ser como sou. Sei dos meus desejos, dos meus projetos e de minhas frustrações (creio um pouco que eles também sabem de mim). E sei que saber tudo isso não é suficiente para estar seguro de uma vez por todas sobre quem eu serei daqui por diante. No máximo, posso dizer que não sei quem vou ser. Ou posso dizer que sei quem não vou ser (pois já não tenho sido): não serei Cláudio, o imperador manco nem serei Cláudio, o pai ausente. Mesmo que cada um dos dois tenham tido seus lados positivos, eu continuarei sendo eu mesmo. Colocando mais presença onde eu tiver sido ausente e corrigindo minhas próprias mancadas.



5 comentários:

  1. Magoo, vim bater no teu texto procurando saber, pela internet, se a Sala de Leitura Gilberto Freyre ainda atua, mas parece que não. Passei por lá semana passada, e tava fechada. Não atendem o telefone. É uma pena! Eu mesmo li "Cláudi, Imperador", de Marguerite Yourcernar, por recomendação tua.

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  2. Oi, Gustavo. Não achei nada na Internet que associasse "Cláudio, Imperador" a Marguerite Yourcenar. O livro que eu mencionei é do Robert Graves. Acho que tu estás confundindo com "Adriano, Imperador romano" que ela escreveu no mesmo estilo de memória em primeira pessoa . Este eu não li. Nesse caso, deve ter sido indicação de teu irmão :).
    Mas o pior é saber que a biblioteca do projeto do Prof. Rafael não está mais funcionando. Será que fechou só aquela de Casa Forte ou encerrou o projeto todo(porque tinha outra em Areias)?

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  3. passaram-se 13 anos ....se estivesse vivo( o Cláudio que não era imperador)teria completado 72 anos dois dias antes de vc ter escrito este post.O seu texto me fez chorar lembrando do nosso pai.

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  4. Clebson Miranda12/21/2014 12:02 PM

    Mais uma sobre Cláudio (o que não era imperador)...
    Seu parágrafo sobre o meu pai Cláudio foi no mínimo econômico... assim como o obituário publicado no jornal. Sei que é difícil falar sobre um homem que se foi e que você não teve o contato que deveria, mas que em mim deixou inúmeras lições de vida que me guiaram e me guiam até hoje, mesmo passados mais de trezes anos após a sua morte (data que não faço a menor questão de lembrar, prefiro a data de seu nascimento, 19/05). Do que você não sabe, conto-lhe que o Cláudio era um homem inteligente, perspicaz, trabalhador, honesto, carinhoso, sábio, despido de preconceitos, engraçado, cativante e um galanteador contumaz (o que por conta dessas duas últimas qualidades, causou problemas de relacionamento com minha mãe).
    O nosso Claudio, como a grande maioria dos homens errou e nós erraremos também, lembro-me das vezes que eu, jogador de futsal (na época era futebol de salão) do CR Vasco da Gama, eu era o único jogador que o pai não ia assistir jogos, na escola foi a mesma coisa, o único jogo que ele assistiu eu já contava com quase trinta anos (joguei mal para caramba e fui substituído). Mas guardo comigo o maior bem que ele me deixou, e assim ele dizia: - Seu pai veio de origem pobre, então, guarde o único bem que eu poderei deixar para você, a educação, porque dela você dará contornos ao seu futuro! As demais lições não cabem em uma rede social.
    De você Claudio (que nem é imperador, nem meu pai), o que me lembro é que uma única vez, conheci um menino (não sei se era você), que não era filho de minha mãe e era muito parecido com o meu Cláudio, tinha a mesma quantidade de melanina, aparência, tamanho e o mesmo nome, e que causou-me um certo ciúme por carregar nome do meu Claudio e eu não!
    Do pouco que a vida me ensinou, sem querer ser piegas, digo-te que errarás como nosso Cláudio, não nas mesmas coisas, mas errarás! Criarás teus próprios problemas de relacionamento com teus filhos, assim como eu criei os meus próprios... e ao final todos seremos errados aos olhos dos nossos filhos, assim como dia a canção :
    .... Minha dor é perceber
    Que apesar de termos
    Feito tudo o que fizemos
    Ainda somos os mesmos
    E vivemos
    Como nossos pais...

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  5. Olá Chrys e Clebson.
    É uma alegria ter vocês dois comentando o meu texto. Se posso negar que o meu(nosso) pai tenha me deixado muitas lembranças de tempo passado ao meu lado, não posso dizer que não tenha deixado lembranças boas, fortes e importantes. Dentre as mais importantes, está a de um dia em que saímos os três. Ele, eu e o meu irmão mais velho. Muito parecido com ele (e provavelmente comigo), inteligente, falante e bem humorado. Que me ensinou um truque com uma chave, o plástico de embalagem de cigarro e um copo de vidro, manuseados de um jeito que fazia o copo parecer se estilhaçar. A primeira mágica que aprendi.
    Foi nesse dia também que fiquei sabendo que eu tinha uma irmã , mais velha que estava na faculdade. E era pra lá que eu queria ir também, quando chegasse a hora certa.
    Com certeza, se tem uma herança importante que nosso pai nos deixou, foi a familiaridade com a leitura. Fico feliz que possamos nos (re)encontrar (com ele) "através" do texto.

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