quarta-feira, novembro 16, 2022

Dez passos para os sonhos de quem ousa agir.

 



O Livro "Dez passos para alcançar os seus sonhos" de Adriana Maria Queiroz, que trás o relato autobiográfico da filha de um casal de sertanejos baianos, nascida no interior de São Paulo, na cidade de Tupã. Jovem de origem pobre, que trabalhou como faxineira para poder pagar a faculdade, e após luta árdua e incansável chegou à Magistratura por Concurso público no Tribunal de Justiça de Goiás.
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De certo ponto de vista, o livro todo é em si, um depoimento de fé. Como se diz nas igrejas e nos tribunais : um testemunho sólido. Para mim, que não sou um religioso muito convicto (estou mais para um cético, que ainda deposita alguma fé nos limites da ciência moderna), o livro trás alguns ruídos que dificultam minha identificação com a heroína. Não é exatamente um discurso que me representa. Mas, não precisa me representar para ser bom e importante.

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Não é sobre mim, mas pode ser para mim. Porque é um discurso forte, impressionante que representa milhares, talvez milhões de mulheres negras, pobres e persistentes, que constituem de uma maneira inseparável o tecido social que liga toda a nossa sociedade. É um discurso que representa muitas mulheres que atravessam as nossas vidas todos os dias. Como sua mãe, sua irmã, sua amiga, a telefonista do seu emprego, a sua supervisora, a sua assistente ou a colega de equipe. A cliente pra quem você tentou vender um cartão de crédito ou um carro... ou mesmo a juíza que vai julgar o seu caso... 
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O livro da Juíza Adriana, na opinião deste leitor, pode ser visto como um testemunho religioso. Mas, também pode funcionar como uma mensagem saída do rapper mais combativo. É um livro com tom de auto-ajuda, mas também é uma carta honesta, do tipo  "Sobrevivendo no inferno" de Racionais MC. Um auto elogio fundamentado na realidade de vencedora, no estilo Emicida cantando "Toma!" ou "Zica"... Um discurso preparado para a batalha do tipo "Levanta e Anda!"...
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Eu não poderia deixar de observar outro aspecto do livro que abre uma lacuna entre esse testemunho e minhas crenças ou minhas opções discursivas... Em nenhum momento, ou melhor, em raríssimos momentos, como se não precisasse dizer o óbvio, o texto faz referência à negritude da autobiografada; o racismo é colocado como uma das muitas barreiras sociais e materiais que a heroína deve atravessar. O machismo também não é nomeado. Nem mesmo para negá-los ou localizá-lo como evento isolado...
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Eu posso sentir falta desses conceitos, Mas, certamente posso supor que uma mulher, filha de nordestinos, pobre e negra no Brasil, sabe muito bem quem é e de onde veio. E o que o texto da Juíza Adriana Queiroz parece querer enfatizar é: para onde podemos ir e como devemos agir para chegar lá. É antes de tudo um apelo para que a pessoa procure agir. Agir por palavras e pensamentos. 
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Essa suposição se mostra uma convicção tranquila, quando cinco anos depois de publicado o Livro, ela atua como Coordenadora do Comitê de Igualdade Racial do Tribunal de Justiça, procurando monitorar e propor Políticas de eliminação do racismo institucional e de promoção de equidade racial. Agindo como uma das responsáveis pela implementação de cotas raciais nos concursos de servidores e magistrados.
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Ao escutar, no livro, o depoimento coerente da autora, posso não me identificar com todas as suas verdades, mas inspirado pelo seu testemunho honesto e pelo seu exemplo de vida, posso dizer que ela está coberta de razão. De razão e de ação. 
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QUEIROZ, Adriana M. (2017). Dez passos para alcançar seus sonhos. Barueri: Novo Século. 


terça-feira, novembro 15, 2022

Pega a bandeira! Pega a Bandeira!! É tudo nosso!




Quando criança eu não era do tipo atlético. Além disso, futebol não era o meu jogo favorito... Queimado e vôlei, eu gostava, Mas também não achava o mais divertido. O jogo que eu gostava de jogar mesmo. O jogo em que eu me divertia de maneira absurda, era o barra-bandeira. Que alguns chamam por aí de pique-bandeira...   rouba-bandeira, ou mesmo captura a bandeirinha...
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Esse jogo, pra quem não sabe (tanta coisa que alguém pode não saber no mundo das criptomoedas, multi-plataformas e metaversos, que não me espanta que uma massa ignorante ignore essa brincadeira.) é um jogo de poucas regras: dois times, em disputa em um campo com dois territórios contíguos e bem demarcados. No extremo oposto de cada território uma bandeira representando o time adversário. O objetivo do jogo: capturar a bandeira que o outro time tenta proteger a todo custo. O maior desafio, atravessar o território inimigo sem se deixar capturar pelo toque paralisante dos concorrentes... As investidas e contenções de um e de outro lado, são o que marcam a dinâmica do jogo. Durante a disputa, os integrantes do mesmo time podem libertar os colegas que foram imobilizados durante seus avanços.
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Só de lembrar esses movimentos você, que já jogou esse jogo, deve estar sentindo uma pontinha de excitação... pode ser que esteja ensaiando dribles mentalmente aí mesmo na cadeira. Pode ser que esteja rindo por dentro lembrando a esquiva esperta que lhe permitiu chegar até o ponto neutro próximo a bandeira, e quase não se segura pela ansiedade em voltar ao território da companheirada de time com a bandeira capturada em suas mãos... gritos! Risos! sei como é...
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Quando uma pessoa do mesmo time alcança o objetivo. E entra desembestado no próprio território, livre e agitando a bandeira capturada. A felicidade é tanta, que nem parece que ele roubou algo dos outros. Parece mais que a pessoa recuperou algo que já era seu. Algo que era nosso!  E pra dizer a verdade, nada garante que esse não possa ser um modo de entender o jogo, capturar a bandeira, pode ser resgatar a bandeira. Porque não?
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Pois bem, se você veio comigo nessa imagem, então vai entender bem o que eu quero dizer com "precisamos capturar aquela bandeira verde e amarela. Que já é nossa! É nossa e está presa, capturada no campo do adversário, aprisionada no universo limitado e mesquinho da violência. Mofando entre cheiro de pólvora e fumaça de óleo diesel, mergulhada em lágrimas de miliciano e sangue de estudante favelado. Quando poderia estar tremulando de prazer, orgulho e amor próprio na mão de brasileiros maravilhosos dos que já viveram como Airton Senna, Sócrates e Abdias Nascimento, dos que ainda vivem como Daniela Mercury, Iza e Anitta. E dos que são brasileiros pela honra como Lewis Hamilton...
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Calma lá! não pense que sou ufanista ou que, ingênuo, cai no conto do vigário positivista da aristocracia brazuca que se infiltrou desde a monarquia, até a república militar, cozinhada sem tempero pelo trabalhismo reformista, e refogada sem sal pela ditadura de 64, brindada com um tira-gosto da anistia geral e irrestrita. Eu sei de onde veio essa bandeira verde e amarela,  meus senhores. E não fiquei sabendo disso por causa  das denúncias de instagram que os algoritmos me entregaram... Minha desconfiança dessa bandeira é por causa da vida de Lima Barreto. Mas, a vontade de tê-la do nosso lado é por causa de Luiz Gama. O jurista abolicionista e republicano que falou contra eles, na língua deles. É tudo nosso! Tudo nosso! O Brasil é nosso. A bandeira do Brasil é Nossa!

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Fôdace pra lá Orleans e Bragança; essa bandeira agora é nossa! Pau dela no fiofó do positivismo deles. Essa bandeira é a bandeira desenhada com lantejoulas no manto do caboclo de lança pernambucano. É a bandeira pintada no chão da favela do Rio de Janeiro. É aquela que meu tio pintou na escadaria por conta da Copa de 70.. e eu, como nasci depois passei 20 anos sem ver uma vitória. É a bandeira de vocês, que vinte anos atrás não viram ou não lembram mais da vitória de Lula, quando ele entrou no nosso campo carregando a bandeira! Depois de tanto tempo tentando avançar e sendo paralisado. Detido, por debates editados no Jornal Nacional e por um plano que, de real, só tinha o nome...

 
Em 2002, quando o nosso lado resgatou a bandeira  e trouxe ela para o nosso campo. Que alegria! ..

Assim como foi em 2002. Assim precisamos fazer hoje, vinte anos depois. Reconquistar a bandeira. E dizer bem alto na cara dessa gente embranquecida, e desengonçada, fedendo a mofo e pólvora, abraçadas com muros, louvando pneus e trocando murros entre eles mesmos: Perdeu, Playboy!
Essa bandeira é nossa. É tudo nosso!

segunda-feira, junho 13, 2022

Pelo fim do discurso Monark: não pode tudo!

 

Eu começaria este texto com a afirmação de que a tristeza de Monark é muito bem vinda. Diria mais: a tristeza de Monark merece um jingle do tipo: "pra noooossa Alegriiiiaaaa!"...

Mas, em primeiro lugar é preciso explicitar que não temos acesso a Monark como uma pessoa física, no mesmo sentido que acessamos fisicamente um amigo, ou um irmão... Aquele primo chato que vem na sua casa de vez em quando, mexer nos seus brinquedos (quando vc tem brinquedo, né?).


Para a maioria de nós, Monark é um tipo de pessoa virtual. Algo como um avatar, ou uma persona construída em função de um determinado "mapa de empatia" (pesquisem sobre isso).

Vamos dizer que Monark é um discurso.

Um discurso sobre si mesmo e sobre o mundo. Esse discurso é flexível, ele pode ser afetado e mudar de aspecto. Um discurso que tem uma dimensão afetiva. Ou seja, assim como "O mercado" que fica "nervoso", "preocupado", "eufórico" com os resultados das pesquisas eleitorais, ou com a visão de uma guerra na Europa (mas, não precisa de calmante diante das dúzias de guerra que ele cria na África).
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Monark é um discurso que tem suas variações de humor. Mas, o elemento principal na estrutura desse discurso é a sua capacidade de monetização. Sua rentabilidade. O discurso Monark se fortalece, se expande, à medida que consegue agregar mais valor financeiro, procurando circular onde é melhor remunerado e ser remunerado onde circula melhor (porque a estrutura é circular)
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Alguns comentaristas ainda defendem o Monark humano, o menino Monark, ingênuo e de bom coração, que começou sua vida nas redes sociais, como discurso, monetizando performances politicamente inofensivas em torno dos jogos eletrônicos. Essa pessoa ainda pode ser acessado por seus parentes, suas amigas e amigos próximos. Contra esse, aquelas figuras críticas, que se apresentam como outros discursos, certamente não teriam nada a dizer. Mas, esse menino, esse homem jovem, não é o tema aqui.
Aqui o tema é o discurso Monark. Que passou a ser monetizado abordando assuntos culturais e políticos, deixando de lado a gramática dos jogos eletrônicos e RPG na qual dominava. Esse discurso irresponsável e nocivo à democracia,  que insiste em se apresentar como vítima de uma condenação injusta...e é "Meio que" (como ele mesmo costuma dizer) "Meio que um discurso Lula, diante dos discursos Moro e Operação Lava-Jato. No caso dele, seu algoz seriam os pessoas canceladoras e os patrocinadores, que são cruéis, violentas e não respeitam a sua liberdade de falar. Ou como prefiro entender aqui : não permitem que ele circule livremente como qualquer discurso, no plenário da democracia (e da monetização).

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A tristeza de Monark apresentada numa performance recente num feat com o discurso Kim Kataguri, que se oferece solidário, mas não incondicional porque tenta ensinar limites ao companheiro de cancelamento Vale ver o video do Meteoro Brasil ("calma, um car**lho. Não começa, Monark) e o video Reels do humorista Fábio Lins);. O discurso Kim foi "cancelado" também, mesmo dispondo de foro parlamentar, como um discurso privilegiado.
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Para nossa alegria, a tristeza e a frustração desses dois discursos, no cenário que se organiza, assim como o Mercado, em função da monetização, não poderia significar outra coisa: o dinheiro está indo em outra direção. E isso é muito bom.
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É bom, porque o discurso Monark, na direção em que estava indo, e no aspecto que estava tomando - e ainda corre esse risco - contribui de maneira ostensiva para o crescimento de outros discursos excludentes, opressivos e letais, tanto para a vida de outros discursos como para a vida de outros organismos e pessoas. Gente concreta, como Monark, lá no seu apê ou como o menino Miguel, no apartamento da patroa de sua mãe, a menina  Ágatha, filhos de mães pretas e periféricas... Discursos e vidas que um partido nazista com certeza exterminaria muito mais rapidamente.
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Se o discurso Monark, na sua busca de monetização, é incapaz de perceber o seu funcionamento  como elemento de propagação do ódio e como fomentador de pensamentos nocivos à vida pública e ao bem comum, então ele não tem condições de circular para além do seu cercadinho virtual. Não é saudável para a democracia que certos discursos prosperem.

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Acho que redirecionar, ou restringir o discurso Monark poderia mostrar ao menino Monark, um "menino" que gosta de se ver como uma pessoa "no caminho do Bem" (salve, Tim Maia!), que é saudável para um ser humano não poder tudo.

terça-feira, abril 19, 2022

A miss Alemanha 2022 representa Domitila (e é nós!)

Por Cláudio H. Pedrosa


(imagem: https://missgermany.de)

A História da jovem Domitila é obviamente maior do que o meu ponto de vista permite ver, é só olhar para o seu nome, que é uma referência à sindicalista boliviana, Domitila Barrios Chungara. (nascida em 7 de maio de 1937).

(Foto: Gabriel Rodriguez/ Fonte:www.umsa.bo)

Mas, do meu ponto de vista, essa história começa com o encontro entre o pai e mãe de Domitila. Ademilson & Roberta, um casal interracial de professores, ativistas pelos direitos das crianças, na periferia de Recife...

Conheci os dois uns anos antes de Domitila, a Miss Alemanha 2022, nascer. Eu tinha algo em torno de 12 anos... foi num carnaval. Lá pelo comecinho dos anos 80. Ademilson, organizou uma La Ursa com as crianças do Córrego. Gente, lá em Recife o que mais tem é Córrego (...do Ouro, do Euclides, do Genipapo, do Botijão.. Enfim, eu sou do Córrego, e a família de Domitila, também). Córrego ou Alto… Morro mesmo, só tem um, visse? - o Morro da Conceição. Onde, aliás, Roberta morava antes de ir viver com Ademilson… Gente que desce desses dos altos e vai pelos córregos sempre é correria, viu?

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Mas, como eu ia dizendo, Ademilson e Roberta, juntaram a criançada que tava à toa ali pelo Córrego e montou uma troça de carnaval. Uma LaUrsa. Com a ajuda dele, fizemos tambores, com sacos de leite presos, em latas sem fundo, por borrachas de câmara de ar. O som lembra um tambor de verdade, daqueles de coro sintético... Saímos pelas ruas da comunidade. A batucada, cantarolando "a La Ursa quer dinheiro, quem não der é pirangueiro!" "Tan-dan-dan! Naquele tempo eu não sabia disso, nem sei se eles tinham planejado aquilo. Mas hoje eu diria com certeza que aconteceu ali foi "uma oficina de percussão" aliás, várias oficinas. Segue a história…

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Lembro até hoje. O que ficou na parede da memória. Lembranças fortes daquele dia, como o fato de ser a primeira vez em que eu fazia parte de um bloco de rua, como é uma La Ursa, porque, até então, eu só tinha sido plateia. Espectador... olhava admirado de longe, quando passava uma dessas la Ursa, ou mesmo um papa-angu, nas ruas do bairro. Naquele dia Ademilson, tinha me colocado, junto com todas aquelas crianças, exatamente no foco da folia. Ali éramos artistas de rua. É verdade que, depois daquele carnaval, eu conheci a apoteose na Escola de Samba Barões do Córrego, onde fui caboclinho, e até destaque como um Santos Dumont. Mas naquele dia da LaUrsa eu era um batuqueiro. E o meu tamborzinho feito de lata e saco de leite, vibrava forte, ao repique de uma baqueta improvisada.

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A lembrança mais forte que ficou mesmo, para além de outras lembranças, foi a experiência de solidariedade que vivi quando o percurso terminou. Durante o circuito que passamos de casa em casa, driblando os ataques de mela-mela, e jatos de água que jogavam das lanças feitas de cano de PVC, várias vezes o coro puxando "pirangueiro" era silenciado pelo suborno de uma doação, geralmente em moedas... que gerava uma gritaria "é gente fina!" ... após vários ciclos de "a La Ursa quer dinheiro, quem não der é pirangueiro" Ademilson tinha se encarregado literalmente de um saco de dinheiro... Findado o circuito, nos reunimos no quintal da casa de seu pai. . Contou o dinheiro e distribuiu todas as moedas em partes iguais para todo mundo que participou. Enquanto dividia o dinheiro, falava para a molecada sobre a importância de dividir por igual, sem discutir quem tinha feito o que, quem era mais importante... igual, entre todos. Até hoje, quando vejo Ademilson ou Roberta sendo classificados nos jornais de "empreendedores" sociais, eu rio comigo mesmo... porque aquele casal de "empreendedores" pra mim, serão sempre lembrados como um tipo de comunistas... ou no mínimo, socialistas.

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Algum tempo depois daquela atividade, no mesmo terreno da casa do pai de Ademilson, onde construíram a casa para viver o casal, (aliás, à medida em que a família ia crescendo, o número de casas no terreno ia aumentando também, igual aos compound de um povoado Yorubá). Primeiro Adelma, mãe de um dos meus melhores amigos, Feliciano, mais conhecido como "Maikel" garoto brincalhão, assassinado pela violência urbana. Depois Alcione, a filha bem empregada, a mulher mais elegante daquela rua, depois Dedêco, o Policial Militar mais simpático e boa gente, que eu já vi... casou-se e construiu sua casa ali, no mesmo terreno. Também Ademilson com sua esposa Roberta. (Posso estar confundindo a ordem das construções. Mas o fato é que pouco a pouco, o espaço foi sendo ocupado pelas filhas e filhos de Dona Alzira e seu Geraldo. Ali naquela pequena cidadela ancestral, eles organizaram um projeto social para desenvolver atividades educativas e de geração de renda voltado para ajudar "crianças carentes da comunidade" ou seja, todas as crianças da comunidade, já que a comunidade toda era "carente" de certa forma…

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Sob a ori-entação dos dois professores, as crianças mais escolarizadas atuavam, colaborando com aquelas que nunca tinham ido à escola... Vamos nos lembrar que isso foi antes da Constituição, antes do SUS e antes do Estatuto da Criança e do Adolescente. Nessa época, Ademilson e Roberta reuniam crianças pobres que tinham casa, família, almoço e escola. E nos convidava a agir conjuntamente com ele, no auxílio de outras crianças pobres que não tinham nem uma coisa nem outra. (Depois descobri que os teóricos chamam isso de "educação pelos pares''). Devido a seus contatos com outras instituições como o Centro Josué de Castro, e uma organização humanitária Alemã, o projeto que antes se resumia a aulas de reforço, prato de comida, e brincadeiras de roda e gincanas, foi crescendo e ganhou o mundo, abrindo uma janela social bem antes do tal Windows abrir-se para consumir nossa vida e inteligência, com seus "clica e arrasta".

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A maioria de nós, à época, não entendia muito bem o funcionamento daquela organização. Centro de Apoio ao Menor e à Mulher...CAMM (de novo, na época não existia ECA, estava em voga o Código de menores...só depois, com o advento do ECA, e com o crescimento da discussão sobre igualde de gênero, que "menor e mulher" passaram a ser Menino e à Menina, mudando as palavras e mantendo a sigla, no que passou a ser o Centro de Atendimento a Meninos e Meninas). Alguns de nós, adolescentes ali, éramos meio ressentidos ou chateados, porque parecia que os nossos mentores privilegiavam as crianças mais "encrenqueiras", estavam sempre botando no colo, dando desconto, gastando tempo... passando a mão na cabeça dos pestinhas. Enquanto para nós, os educados, meninos e meninas de família, os que não eram "maloqueiros" sobravam exigências e cobranças... Na época parecia injusto... Mas hoje sei que os teóricos chamam isso (eu chamo isso) de "ação afirmativa" e de equidade... (Coisa de cristão esquerdista, que acredita nas pessoas). E as cobranças, que nós achávamos injustas, eu acredito hoje, que era baseadas na confiança que tinham em nós. Era uma tentativa de nos conscientizar das nossas próprias capacidades... Muitos de nós, éramos capazes. Mas, a gente só não acreditava que era. E eles acreditavam... E pelo que sei continuam acreditando com muita força… Alguns diálogos de que me lembro:

Ademilson pintando um letreiro no muro pelo lado de dentro, me chamou pra perto dele, pra conversar…
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Começou falando uma coisa "aleatória" sobre o disco de Newton, que eu não conhecia na época, disse que era um disco pintado com todas as frequência de cores visíveis, lado a lado. E quando o disco girava rápido, um observador podia ver as cores se fundindo num branco, tornando impossível distinguir entre azul ou vermelho... Depois esticou a conversa observando o fato de que eu estava me envolvendo com diversas atividades, ali e aparentemente estava tendo dificuldade de conduzir todas elas... Eu era do grupo de teatro, responsável pela gibiteca; era do controle de fabricação e venda de picolés, do grupo de alfabetização e reforço escolar da tarde, e estava planejando dar um curso de desenho. Não que na ocasião eu recebesse aquilo como o sábio conselho que era. Na hora, só pensei que estava sendo criticado e isso não era bom (geminiano sensível é osso!).

Hoje vivo dizendo a mesma coisa pra mim: sossega rapaz. Não pegue tantas coisas pra fazer que vai dar branco! Lembre-se do disco de Newton. (risos).

Outro diálogo que lembro com nitidez, tive com Roberta, quando Domitila já tinha nascido e, pequena, brincava entre as pernas da mãe, enquanto eu contava entusiasmado que já tinha escolhido o nome que colocaria num filho, se um dia tivesse. Influenciado pela leitura do clássico Tarzan (não o filme. Livro mesmo, porque eu era um pivete sofisticado. Letrado!). O Tarzan de Edgar Rice Burroughs, que li, peguei numa biblioteca. Hoje (graças ao Google) sei que era da editora Codil) uma edição de 1959,
mais de 250 páginas, com lindas gravuras coloridas em couchê, capa dura com figuras em baixo relevo na lombada, e logo de cara na página de rosto, um homem branco típico, com a mão em concha na frente da boca, e um mico em suas costas, vestindo uma tanguinha de leopardo, conclama os animais da Savana africana... Numa perfeita ode ao machismo colonial, (supondo que não era um elogio à estética gay do Village People). Enfim, inspirado por esse livro, aliás pelos vários livros dessa coleção, eu que ainda não tinha entrado na adolescência direito, já tinha escolhido o nome da criança que eu pensava em nomear. E estava contando para Roberta, mãe de Domitila. O nome que eu escolhi? John Clayton Greystoke.

Ela não gargalhou na minha cara nem me expulsou do projeto. Só perguntou delicadamente, se eu não teria um nome mais brasileiro. Para ela, parecia um nome muito, assim, “americanizado”... Imagina o que ela diria se soubesse que antes de entender o que era “pensamento colonizado”, eu havia trocado os nomes de John Clayton para Kal-el, Zor-el e Koryander. (Todos personagens alienígenas de revistinha de super-heróis dos Estados Unidos). E o que será que ela diria ao saber que hoje eu tenho três filhas. E todas com nomes da língua portuguesa. Luísa, Beatriz e Teresa… é verdade que as duas mais velhas, não foram escolhas minhas. Eu só achei bom!. Mas, de alguma forma, a escolha de Teresa foi reflexo dessa consciência anticolonial. Claro que elas poderiam se chamar Ona-í ou Tampirawã-í... Mas aí já acho que eu estaria sendo hipócrita..


. (imagem: http://cammbrasil.org/)

Enfim, o fato é que muita coisa do que sei, muito de quem sou, aprendi naquele coletivo liderado por Roberta e Ademilson, mesmo quando não segui com eles na continuidade do projeto, que cresceu e mudou de local, mantive comigo uns ensinamentos e uns princípios. Algo já comum na minha família e naquela comunidade, mas que eles dois souberam catalisar e representar muito bem.


. (foto: Internet)

E mais do que isso, além de representar, eles conseguiram transmitir essa capacidade de representar nossa comunidade, a todo mundo que passou por lá. Inclusive a própria filha deles, Domitila, que leva adiante um legado de emancipação, e não o desejo colonizado, de se identificar com o Tarzan ou de batizar uma criança brasileira com nome de John Clayton Greystoke. Domitila, representando a tradição das periferias, impõe-se, ironicamente, no universo dos colonizadores, ostentando uma frase que a Europa entende "She's from the Jungle" para ali colocar à venda, numa perspectiva solidária, o produto do trabalho de artesãs da periferia de Recife. E dessa posição autoafirmativa, ela encontra uma janela, fora do Windows, nas telas das telenovelas (sim ela foi estrela de novela em alemão), e dentro das passarelas. Para, passando por elas, chegar ao inusitado título de Miss Alemanha. Sem abrir mão de sua identidade inicial. Uma verdadeira façanha!

Eu nunca imaginei que me sentiria tão bem representado por uma Miss.


(Fonte:instagram @domitila_barros)

Mas, o que me encanta nesse processo e que me faz ver uma conexão entre a revolucionária Domitila Barrios, e o bairro de onde veio essa jovem Domitila, o que me dá essa e a sensação de que essa Miss Alemanha representa toda a nossa gente, ao ponto de podermos comentar com orgulho: eita, sabe aquela Miss Alemanha? Eu conheci ela quando ainda era uma menininha, brincando no colo da mãe, carregada pelo pai… Algo mais me deixa feliz nessa história, além de saber que, no final, eu não tenho um filho chamado Clayton Greystoke, (obrigado, Roberta) …




(imagem: https://missgermany.de)

O que me deixa feliz de verdade é saber que Domitila, mesmo indo para a Europa nas tranças da ironia: "She is from the Jungle" e ganhando o concurso de Miss Alemanha, ela mesma não mudou muito. Né? O que mudou muito foi o concurso de Miss Alemanha.  E o Mundo.

P.S.

Enquanto eu estava pensando se postava ou não esse texto, recebi uma mensagem de um dos meus maiores amigos de infância - maloqueiro de Córrego, igual a mim (igual a Maikel, tio mais novo de Domitila, morto pela violência urbana). Marquinhos viveu comigo aquela mesma época, e trabalha hoje na emissora de TV local (onde está o melhor Carnaval!), lá onde recebeu a ilustre visita de Domitila.
Fim da dúvida, resolvi postar (muito obrigado, Marquinhos... e, Domitila só faltou o autógrafo.) É nós!

  (Fonte: arquivo pessoal)

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