segunda-feira, setembro 16, 2013

Matalanamão - 20 anos: um projeto dos tempos do caldo de cana


Ailton Guerra | baterista do Matalaamão | facebook da banda
Que tempos eram aqueles? Não eram os glamourosos anos 50, nem mais os alucinógenos  60; já não eram mais os intensos e coloridos anos 70. Tinham sido há pouco tempo os irônicos e ingênuos anos 80. Mas, eram já os anos 90. Tempos tediosos, ansiosos por se reinventar.  Nesses tempos, já brotara e desbotava a bruta flor do querer. O mais interessante, para além das substâncias psicoativas e do sexo - que tinham sido, ambos, mais bem explorado nas décadas anteriores - era a música. Sobretudo aquela música que se apropriava engenhosamente da musicalidade mais antiga, e se convertia em sonoridade própria, atual e fresca, como faz um engenho de caldo de cana que tritura o bagaço e nos deixa o suco, doce que se junta ao gelo numa manhã de feira movimentada e de sol quente. Eram esses tempos monótonos, e na monotonia desses tempos alguns jovens ainda procuravam com sua trituragem de engenho "transformar o tédio em melodia".

Naqueles tempos o tédio era tanto que a melodia sobrava. Impregnava os espaços; rebatia-se nos corpos, se aglomeravam nas entradas dos captadores e virava microfonia, grito mecânico. Orgasmo de máquina. Cheia de vitalidade. Por outro lado, se o tédio e a melodia eram sobejantes; se sobravam dentes nas moendas engenhosas dos jovens fazedores de caldo de cana, faltavam-lhes outros recursos; havia em seus quintais mais bagaço do que cana.

A situação, no Alto José do Pinho por exemplo, naqueles tempos era tal que cada jovem fazia parte de pelo menos duas ou três bandas ao mesmo tempo, mas cada um desses jovens dividia seus instrumentos e equipamentos de som com pelo menos outros dois ou três jovens. Não era raro as gambiarras para reaproveitamento do material que caía aos pedaços. Neilton, o mestre das sucatas, (na linguagem do empreendedorismo: tecnologia obsoleta ou morta) é o caso mais famoso, mas não era o único por ali a usar material  que tenha sido - ou estivesse precisando ser - reaproveitado.

Era assim, a trituração do tédio em doçura de caldo de cana na moenda dos meninos, era feita com o bagaço que aparecesse. Não esqueço o ensaio em que a baqueta de Ailton, de madeira carcomida e esfarelada, fazia uma caixa de papelão ressoar com a energia de uma alfaia de maracatu. Não era ainda o projeto Matalanamão. Mas era um projeto que poderia ter sido, e que cumpriu o seu papel de projeto. 

Naqueles tempos de tédio e moinho de engenho, sobravam, além da melodia, os projetos - que era como eles se referiam às bandas que montavam. Era interessante notar que ao se referir às bandas como "projeto" eles indicavam que se tratava de algo muito maior do que simplesmente juntar  uns instrumentos e tocar.

O projeto era claramente uma forma de se lançar, uma tentativa de alcançar um outro tempo, um tempo maior, ou mais rápido, um tempo mais intenso, ritmado no contra-tempo, ao contrário do cotidiano. Um projeto era uma semente, ou um talo de cana-de-açucar, que ganhava seu sentido na multidão de iguais que era plantada ao seu lado. Sabia-se desde sempre que, fatalmente, nem todos vingariam. Por maior que fosse a pressa ou a paciência. Mas, nessa lógica de semeadura, cada projeto era a potência de uma possibilidade. Como um talo de cana-de-açúcar, fincado na terra de onde poderia vir ou não, um delicioso copo de caldo de cana, a depender das intempéries e da natureza indecifrável do próprio talo; do conjunto de eventos que definem o rumo da cana no mercado açucareiro.

Por isso naqueles tempos tediosos, proliferavam "os projetos". A maioria esvaiu-se com o passar do tempo. Projetos abandonados, projetos concluídos, projetos nem sequer inciados. Letras perdidas, melodias esquecidas, músicas usadas em outros projetos, reaproveitadas.

Nesse percurso, em que "a pressa de vingar" pode fazer a diferença entre o projeto morrer ou vestir-se pra matar, poucos podem dizer que ainda dão um bom caldo. Poucos como o Matalanamão. Iniciada naqueles tempos, como mais um "projeto" (e não um dos maiores). Formada naqueles tempos por jovens que tinham mais de um projeto (e todos desimportantes); tocando naqueles tempos com instrumentos compartilhados entre varias bandas (nenhuma com a "cozinha" completa), vários projetos se perderam na seca ou na enxurrada. Poucos conseguiram cumprir uma trajetória maior que dez anos. Pouquíssimos conseguiram chegar até hoje com a mesma vitalidade do início.

Eu sou da lira, não posso negar a importância e de outros projetos como o da Banda Devotos, que começou como Devotos do Ódio; ou a da Rádio Comunitária Alto Falante, que não é uma banda, mas é um projeto importante idealizado naqueles tempos. Daqueles tempos também restaram inegáveis, o peso de uma Tonelada de projetos como Nação Zumbi e o Mundo Livre S.A, (pra não ficar só falando  que "o meu bairro o maior; meu bairro é o melhor").

Mas, o que me encanta desde aqueles tempos é a doçura  "frutiferoz" do punk rock escrachado que o Matalanamão defende e representa, transformando o tédio em melodia. E a melodia em distorção, sempre tão jovens como nos velhos tempos. E para usar uma imagem muito familiar ao Matalanamão, eu vou encerrar dizendo que depois de vinte anos a banda continua fazendo um punk rock da Cana caiana: do talo grosso e do caldo doce.




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