sábado, fevereiro 18, 2023

Carta de Canuto da CPT para o Professor Gilson Ipatxi'awyga do Povo Apyãwa (Tapirapé)

No centro da foto de close no rosto, o professor Gilson, homem indígena, sorri usando um cocar azul, vestindo camisa cinza.extrapolando os lados, direitos e esquerdo da imagem, uma mulher cabelos crisalhos e um homem, ambos de costa parecem cumprimentar o professor. No canto a logomarca da UFG, e a baixo a frase "Professor Indígena - primeiro docente indígena da UFG é empossado no Núcleo Takinahaky"




Eu roubei esta carta para compartilhar com vocês.
Fiz uso de um privilégio, para interceptar essa conversa e compartilhar com vocês...
Por nenhum motivo nobre, pelo vão desejo de registrar um evento que certamente é histórico, de uma história que não é só minha, mas que é de toda a humanidade. Uma história que não é só de Gilson Ipaxi'wiaga, mas de todo mundo Apyãwa, e de todo mundo...

Uma história que muito certamente não é uma vitória da UFG, como a propaganta institucional na foto faz parecer.. A notícia deveria registrar que na prática, o Professor Ipaxi Awyga chegou ali, apesar da instituição, graças ao esforço coletivo de seu povo e dos aliados de seu povo. Que juntos conseguiram furar o bloqueio excludente histórico que a instituição representou. Mas, como sempre, e sem motivos nobres, a instituição após ter seus muros ultrapassados, portanto vencida, aparece para celebrar uma vitória, como se tivesse lutado bravamente por essa conquista. Claro que há contradição, e algumas vezes a dimensão instituinte da instituição prevalece, e os aliados ocupam o lugar instituído, dando um pouco de espaço a quem já o teria por direito.

Mas, esqueçam minhas palavras e leiam a carta que eu roubei para compartilhar com vocês, cinco gatos pingados que perdem tempo por aqui...

A CARTA :

de Canuto*

Companheiras e companheiros, Ontem participei na Universidade Federal de Goiás da solenidade de tomada de posse do primeiro professor indígena desta Universidade e este professor é um tapirapé Gilson Ipaxi Awyga. Foi um evento bem concorrido. O pai dele, a esposa e filho vieram da aldeia. O Luiz me lembrou que o pai dele, alguns dias atrás, lá pelo ano de 1974, foi um dos dois Tapirapé que foram comigo e o Luiz, de bicicleta, da aldeia até Porto Alegre, que era um lugar muito isolado da região. Lá pontificava o Altair, agente da Prelazia. Esse novo professor da UFG vai ficar lotado na faculdade de Letras. Na universidade tem um curso de formação intercultural indígena, já faz alguns anos. Gilson, na sua fala, fez menção, até emocionado, à mensagem que recebeu do Luiz Gouvêa na qual ele lembra que não esqueça de seu povo e de sua aldeia.

(Repasso depois a mensagem que Luiz lhe mandou). Esta posse de um Tapirapé como professor universitário se dá neste ano de 2023, que marca que o início do processo de alfabetização dos Tapirapé, ocorreu há exatos 50 anos atrás, 1973, quando Luiz e Eunice foram para aldeia com o André, com apenas poucos meses de idade. E 1973 foi o ano da grande repressão e eles tiveram que sair da aldeia atravessando a Ilha do Bananal alguns trechos de tropa, outros de barco e não sei mais de que jeito e foram acolhidos por Dom Tomás, la em Goiás. Quando a poeira baixou voltaram para a aldeia para dar os primeiros passos deste trabalho de encher os olhos. Produziram todo o material didático necessário, cartilhas, gramática, dicionário, etc, etc. Tudo na língua indígena.

Eu sempre faço questão de dizer que os Tapirapé são o grupo humano mais escolarizado deste Brasil. Todos são alfabetizados, os jovens estão ou já concluíram o ensino médio e são mais de 80 na universidade, e já tem alguns com mestrado concluído e outros cursando o mestrado. E tem um já no doutorado. Vamos ver o que vai ocorrer com este primeiro professor universitário tanto do povo Tapirapé quando da UFG. Se isso vai servir para dar mais força ao povo, ou vai afastá-lo assumindo o que nossa sociedade vive. Vamos torcer para que dê certo. Como Luiz lhe lembra na mensagem enviada, ele não pode esquecer de que se chegou a este ponto, muitos contribuíram para que isso acontecesse e isso não pode ser esquecido.

Eu ainda falo nos Tapirapé, mas hoje fazem questão de serem chamados de Apyãwa, que era o nome original do seu povo. Tapirapé foi o nome a eles atribuído por não indígenas que fizeram os primeiros contatos com eles.

Um grande abraço a todas e todos Canuto



A mensagem do Luiz**

Agato xanewe Apyãwa Wyragy!Agato newe, Tenywaawi!
Com certeza, este é um dia de muita expectativa pra você, Tenywaawi e para o povo Apyãwa também.Queremos te parabenizar, mas também lembrar que este dia é apenas mais um passo de uma caminhada que começou já faz tempo, lá em Orokotãwa, Majtyri, Wiriao.

Certamente esta caminhada vai longe, porque você ainda é jovem. Tô te dizendo isto porque é neste caminho que você está, a cada dia, construindo a vida. E há muita gente nesta tua estrada. Primeiramente, a tua família e o teu povo, sobretudo os idosos.

Depois, outras pessoas se somaram: professores Apyãwa e maira, pessoas que não são da escola mas também contribuíram. Mesmo aqueles que ameaçam o teu povo, ajudaram a construir a tua vida, pois, colocaram todo o povo Apyãwa e você também em alerta. Depois, veio a universidade, da qual você vai fazer parte, mais efetivamente, agora.

Você não me pediu conselho e eu não vou te dar. Mas vou te fazer um pedido. Não se esqueça de seu povo, nem da história vivida. Talvez até algum dia vai ser bom recordar que vocês, de Wiriao, tiveram que fazer a pé ou de bicicleta o trajeto até Xapi'ikeatãwa para poder estudar. Tempo difícil, né? Dificil, mas enfrentado certamente com muita coragem.

Enfim, sua história não se fez em um dia ou em alguns anos, mas se fez, primeiramente, na vida vivida junto do Povo Apyãwa. Queremos desejar boa sorte pra você e que você leve contigo a vida do teu povo, onde quer que você vá. Parabéns, xará! 

Grupo de pessoas, com assessórios e cocar indígena, alinhadas ao lado do professor Gilson, que é o penúltimo, da Esquerda para a direita. Confraternizam-se com o parente, sorrindo para a foto.
Foto do instagram da UFG

 

 


* Antônio Canuto é um ativista católico, integrante da Comissão Pastoral da Terra (CPT). Autor do Livro. “Resistência e Luta conquistam território no Araguaia Mato-Grossense”

**Luiz Gouvêa de Paula. Também um ativista, educador e indigenista, integrante do Conselho Missionário Indígena - CIMI - Regional Mato Grosss. Prelazia de São Félix. Autor de inúmeras obras que registram, estimulam e divulgam o processo de letramento e escolarização dos Apyãwa (Tapirapé), território em que atua desde os anos 70.

Canuto e Luiz dedicam a vida ao trabalho de defesa dos direitos e dignidade dos Povos originários, na companhia do Bispo Dom Pedro Casaldaglia, falecido em 08 de Agosto de 2020.

A conquista de Gilmar, é uma conquista dessa comunidade, a comunidade Humana. Nossa conquista.