quinta-feira, dezembro 31, 2015

UM FELIZ ANO NOVO, A PESAR DO CINISMO.

A julgar por alguns artigos da Edição Especial de fim de ano da Carta Capital, 2015 foi um cocô. Para o colunista Marcos Coimbra, “Termina um dos piores anos da nossa história recente. Talvez nenhum desde a ditadura tenha sido tão ruim.” Para o próprio Mino Carta - que analisa no Editorial, não só os problemas nacionais, mas o progresso da humanidade como um todo - a questão não é de difícil solução: basta um pouco de ironia e bomba atômica:
“O problema mais sério a afligir a civilização em progresso é a superpopulação do planeta, mas não há guerra atômica que não possa resolvê-lo.”
Eu, como gosto mais de ironias do que de bombas atômicas, gostei do tom geral da Revista que nos convida a “Rir para não chorar”, mostrando que, se a literatura da América Latina presenteou o mundo com “O Amor nostempos do Cólera” A política nacional dá a deixa para o Humor em tempos de Cólera.
Dizer que a política “dá a deixa” é um eufemismo, porque nossa política tem sido um festival de piadas prontas, deixando quase sem material para trabalhar humoristas profissionais como a equipe do Porta dos Fundos, ou do Jornal Sensacionalista, que precisam de criatividade extra para distinguir suas ficções e personagens, de “fatos reais”, de políticos “famosos”  e de jornalistas “sérios”... e haja aspas!
A existência dessa confusão entre o ridículo da realidade e o risível da ficção, por si só já lança uma dúvida sobre a assertiva pessimista do Marcos Coimbra: “Termina um dos piores anos da nossa história recente…” ? Talvez nenhum desde a ditadura, tenha sido tão ridículo! Não dá pra dizer se foi o pior mesmo, ou o menos sério de todos... mas o Brasil nunca foi tão ridículo: A pior Crise! A maior pedalada fiscal! A maior corrupção da história! A revolução das panelas! Carteira Assinada extinguindo o emprego das domésticas!! Brancos sendo oprimidos por sua “opção racial”!! Bichas agredindo o crucifixo! Negros da zona norte do Rio querendo passear em Copacabana!! E a polícia sendo criticada por ter uma boa pontaria!!!
Que foi um ano ruim pra muita gente, e u não tenho dúvida; que foi o pior para alguns de nós, eu tenho certeza. Mas, em primeiro lugar é preciso lembrar que nem todo fiasco foi mal de todo. Em segundo lugar, Aécio Neves.

É bom que se diga que algumas piadas sobre fiasco são recorrentes e engraçadas.

Mesmo com todos os desencantos de 2015, eu teria uma lista de conquistas e eventos para celebrar, assim como conheço pessoas que teriam uma lista parecida. Como não sou tão arrogante a ponto de achar que fazemos parte de uma elite, ou de casos excepcionais, estamos cientes de que fazemos parte de uma estatística que a imprensa convencional e os analistas pessimistas fazem questão de obscurecer.
Para os que duvidam do caráter intencional desse obscurecimento, um dica: pesquisem a ingênua expressão “a pesar da crise”. E vejam, por exemplo, o meu conterrâneo Diário de Pernambuco, que parte do chavão “Apesar da crise, dados mostram redução dapobreza extrema e desigualdade”, e passa por uma matéria que mostra quatro pernambucanos que estabeleceram carreiras de sucesso em 2015. Mas, elege como manchete de capa a cínica frase da mais pura urubologia: “País que deu um salto ameaça tropeçar”.



Em comparação com a “era de ouro” implementada pelo idolatrado e abominado Presidente Lula, o segundo mandato da Presidenta Dilma, é mesmo um fiasco. Mas é preciso ampliar o parâmetro de análise. Se alguém poderia reclamar as honras de ter feito melhor, é ele, pois ele é “o cara”. Os outros só podem ficar calados, pois não chegaram nem perto, ou fizeram tudo que puderam para atrapalhar o governo dela, que deveria ser mais respeitada. Por ser "a coroa" mais honesta e digna do que qualquer "cara" que já tenha usado aquela fitinha verde e amarela sobre os ombros.

Quando falo em situação ridícula, penso nessa molecada, reivindicando “sucrilhos no prato”, que paga de vlogueiro irreverente na internet e depois desfila engravatado, em ares pomposos repetindo num discurso pungente (sic!) o catecismo fascistóide e neo-liberal em seções especiais na plenária da Câmara. Esse pessoal não sabe da missa, um terço.

Mas quem foi criança nos tempos da ditadura (nos suspiros finais, é verdade) e cresceu na democracia da Nova República, lembra do Brasil que havia debaixo do bigode do Presidente Sarney, do Nariz do Collor e do Topete do Itamar.
Eu lembro bem das horas que passei na fila do ticket leite; ou subindo e descendo ladeira em busca de uma lata d’água; esperando minha mãe voltar do trabalho como um “vale-adiantamento” pra pagar o fiado na venda e poder comprar o jantar; das várias vezes que religamos na clandestinidade a luz cortada por falta de pagamento; das muitas vezes que fui estudar às custas de um motorista bondoso que me deixava entrar pela porta dianteira porque eu tinha usado o passe estudantil para comprar comida.; de muitas outras histórias de exclusão financeira, vividas por mim e pelos meus vizinhos. Lembro de tudo isso quando falo em ampliar o parâmetro de análise para contornar as conclusões mais pessimistas sobre o saldo do ano.
Não quero desmerecer as críticas fundamentadas: eu também esperava mais do ano e do governo. Sobretudo em termos de políticas públicas. E claro que muitas tragédias atingindo cidades e famílias no Brasil e no mundo, silenciam qualquer esboço de comemoração alienada. É preciso ser reverente diante de tanta dor...
Além disso, está mais do que evidente o endurecimento da resistência racista, machista e homofóbica, como reação contra o avanço dos direitos humanos atingindo em especial as mulheres negras, famosas ou menos conhecidas, cis ou trans, putas ou santas. É difícil ficar tranqüilo diante de tanto horror...
Mas, não poderia desconsiderar a abundância de histórias de vitórias e de prosperidade, envolvendo as pessoas que me rodeiam, pessoas mais ou menos distantes.  Que formam um conjunto, ou uma estatística, sistematicamente obscurecida pelo pessimismo dos mais sinceros e pelo oportunismo dos mais cínicos.
Cheio de reverência pelas perdas e indignado diante da violência, eu mantenho minha esperança no ano que começa amanhã, com base na evidência de que muito foi conquistado e mantido, por mim e por muitos outros, sobretudo mais pobres que eu (considerando minha origem, haver gente mais pobre que eu já é, em si, um sinal de desenvolvimento social).

_ A gasolina está mais cara?
_ O posto onde eu abasteço contratou mais frentistas;
_ A comida está cada vez mais cara? Aqui na esquina abriu uma cervejaria com petiscos deliciosos e vive lotada;
_ A conta de telefone está alta?
_ Falo com familiares no Rio e em Recife pelo Whatsapp diariamente;
_ O índice de preços ao consumidor é o maior dos últimos anos?
_ Compras pela Internet batem record, e o Shopping que abriu recentemente na vizinhança está superlotado;
_ O gás de cozinha está muito caro?
_ O revendedor acaba de ampliar o espaço para responder ao aumento da demanda local.
... e por aí, vai...

Contra o cinismo oportunista, e em respeito ao pessimismo sincero, eu quero desejar no último dia do ano, um Feliz 2016, e assumir que 2015 foi bom pra mim, mesmo sabendo que poderia ter sido melhor.
E eu vou dizer com tranqüilidade que sei que nem tudo é culpa da Dilma, porque ela provavelmente não votou no Eduardo Cunha. Talvez seja tudo culpa do Sarney, porque ele, sim, votou no Aécio.

quinta-feira, março 26, 2015

Ao jovem Fernando Holiday, com carinho...


Fernando, alguns de meus amigos me chamam de Mr. Magoo (por causa da miopia e do carisma), outros me chamam de Cláudio mesmo. Eu tenho idade para ser seu pai. Mas, escrevi este texto para você, movido por um sentimento de irmandade que sei que é frágil de um ponto de vista racional, mas sinto como forte do ponto de vista histórico, político e afetivo. Não sei se você será capaz de compreender a complexidade dessa relação hoje. No tempo em que eu era você, eu também não a compreendia.
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No tempo em que eu era você, se alguém me dissesse o que eu te digo hoje, é possível que eu desse de ombros, virasse as costas. É verdade que naquele tempo, ninguém me disse algo assim. De qualquer forma, eu vou falar com você hoje. Porque hoje eu não sou mais você; eu aprendi a ser outra pessoa. E assim, como eu aprendi, com o tempo, espero que você também aprenda. Afinal, o tempo é maior que nós dois.
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É por acreditar no tempo, e nas transformações que ele realiza, que eu queria falar com você. E queria que minha fala soasse carinhosa, sem rancor, sem revolta. Não escrevi isso para “esfregar nada em sua cara”, muito menos verdades.  Eu queria mesmo era saber de sua vida, queria conhecer você melhor, para além do que já sei de você pelo que há de você em mim. E para além do que já sei de você pelo que há de você em meu querido irmão. Que, aliás, parece um pouco com você. Meu irmão é como você: bonito, inteligente e negro. Acho que foi por causa dessa semelhança entre você e meu irmão (mesmo que ele não seja mais tão jovem quanto você), que eu resolvi me dirigir a você da forma mais carinhosa possível.
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Fernando Holiday no vídeo "Como se defender com uma banana"
Fernando, você não é o primeiro, nem o mais importante negro a ser usado por aqueles que gostariam de manter as coisas como as coisas sempre foram. O passado remoto e a história recente estão cheios de exemplos de alianças entre brancos exploradores e negros escolhidos entre os explorados, para facilitar a exploração. A colonização africana foi feita dessa forma em muitos países. A manutenção da escravidão no Brasil se apoiou nisso. O nosso futebol e a teledramaturgia global pipocam de exemplos, com suas realezas e suas globelezas. Pessoas negras cooptadas para manutenção do racismo e da discriminação fervilham desde o tempo em que as mídias não eram tão virtuais... você, Fernando, definitivamente não é o primeiro, nem o mais importante negro a chacoalhar uma banana na internet gerando mais lucros e risos para grupos de brancos ricos.
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 Não vou fingir que não fiquei puto de raiva quando assisti os seus vídeos, comecei por aquele em que você critica as cotas (e as gostosas - eu também nunca dei muita sorte com elas na sua idade), e fui vendo os outros, em que você fala mal dos estudantes de humanas (como se a maconha fosse desconhecida pelo pessoal das exatas ou das engenharias); em defesa do porte de armas para os “cidadãos honestos” você protestou… comendo uma banana?!? (onde eu já vi isso?!?!); a ironia com a Luciana Genro do PSol (podia ter sido com o Jean Willys, porque ele sim, entrou em conflito com as mulheres negras, mas você não sabia, né?). E o trocadilho com o Genoíno (não foi você que fez, aquela piada, né?). Então, claro que fiquei ofendido quando assisti aos seus vídeos. Mas, mais forte do que a revolta foi a tristeza que me abateu quando vi naqueles vídeos, com você… o menino que eu já fui. Alienado de sua própria condição de negro, usado como o cavalo de um egun ingrato, que não vai lhe deixar nem mesmo o gosto da festa na boca quando abandonar o seu corpo.
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Quando vi você descascando aquela banana, sem saber o que fazer com ela, a não ser comê-la em frente à webcam...eu fechei os olhos e chorei. Chorei como quem chora a morte de um irmão querido. Não estou fazendo uma metáfora, eu realmente chorei de tristeza por ver a que ponto de alienação pode chegar um jovem negro, que poderia ter sido eu, ou o meu irmão. E em razão dessa tristeza que resolvi escrever esta carta pra você, com carinho. Porque, mais do que revoltado, fiquei triste e desapontado.
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Fernando, meu irmão, eu não esperava isso de você. Na verdade, sei que isso não veio de você. Assim como não veio de mim a agressão que eu pratiquei várias vezes contra a menina negra que morava na minha rua. Eu não disse que já fui você? Pois é, quando eu era você, nem negro eu era. Eu era ‘moreno’. Negra era a minha vizinha Conceição que eu xingava de macaca, toda vez que apanhava dela. Negro era o meu vizinho Walmir que me contava todas as piadas de negro que eu conhecia. Fernando, você, Walmir e eu, quando repetimos com nossa voz o desprezo por coisas que poderiam dar aos negros um lugar de destaque no mundo; quando repetimos com nossa voz o discurso de desprezo pela identidade dos negros; quando nos colocamos a serviço daqueles que querem que as coisas voltem a ser como eram, segundo a ordem racista; quando agimos assim, isso não vem de nós. Isso passa através de nós, que somos usados como carcaça vazia, por aqueles que continuarão sorrindo e enriquecendo às custas de nosso suor, de nossa carne negra, de nossos lábios grossos e de nosso cabelo crespo (cabelo que eles fazem questão de manter bem aparado).
Fernando, no tempo em que eu era você não haviam cotas ou qualquer política de ação afirmativa. Não havia ao meu redor, qualquer discussão sobre o mal do racismo, ou sobre a violência contra os negros. E eu cresci sem ouvir uma palavra qualquer sobre a possibilidade de um negro sentir orgulho de si mesmo. Por isso, quando tive contato com as primeiras discussões sobre identidade racial, ações afirmativas, luta pela igualdade entre negros e brancos, ou direitos civis para afro-descendentes, achei tudo isso “uma grande besteira!” Afinal, somos todos seres humanos, e o humanismo seria o único “ismo” que valia a pena defender. Todos os outros, como, por exemplo - e principalmente - o “feminismo” eram fruto de cegueira intelectual. Assim como você, eu já desprezei esse discurso de “orgulho negro” “Orgulho de quê ?” - eu dizia -  “Eu não fiz nada para ser negro!”
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É, Fernando… eu já falei assim como você. Mas, com o tempo, eu fui ouvindo o que aquelas pessoas - em sua maioria mulheres e negras - estavam me dizendo... por que será que elas insistiam naquilo? “identidade negra”, “100% negro”; “representação de negros”; “a vida das mulheres negras”; “cotas raciais”; “história da África”; “artistas negros”; “cientistas e pesquisadores negros”,  “a pele negra”, “o preconceito contra o negro na linguagem” …mas,  que obsessão! Com o passar do tempo, fui ficando curioso para saber o que aquilo significava... Tenho esperança de que você seja um jovem com curiosidade. Pois, como disse Tom Zé: “o que cura a humanidade é a curiosidade”.
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Espero que você use a curiosidade para se perguntar e perguntar aos que te rodeiam: Você é mesmo contra o estatuto do desarmamento? Você tem mesmo esse ódio da Dilma ou só queria ser engraçado? Você acha mesmo que são as cotas raciais que humilham os negros? Onde você leu que Zumbi dos Palmares era igual a Hitler? Olhe ao seu redor, você está mesmo rodeado de pessoas iguais a você? E mais importante: quem colocou no roteiro a ideia de você comer uma banana? E por que essa cena virou o título do seu vídeo?
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Como já disse, acho que foi por causa da semelhança entre você e meu irmão - entre você e eu - que eu resolvi me dirigir a você da forma mais carinhosa possível. Embora tenha idade para ser meu filho, você me lembra mesmo o meu irmão. Bonito, inteligente e negro. Só que o meu irmão, ao contrário de você, quase não discute política. Ele não saberia a diferença entre “direita e esquerda” a menos que estivesse falando da sinalização de trânsito. Mas, você fala como se conhecesse a “esquerda” profundamente... colocando no mesmo pacote, o MST, Dilma, e os professores que dão aula de “marquicismo”... aliás, você parece conhecer mais a esquerda do que Dragon Ball ... já que virou motivo de piada quando errou o Kamehamehá.
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Fernando, meu filho; Fernando, meu irmão, eu espero sinceramente que você leia o que eu escrevi pra você com carinho (estarei sendo ingênuo?). Ao menos fica a esperança de que outros jovens negros e negras, assim como você é hoje - assim como eu já fui - sem consciência de sua condição racial, mas ao mesmo tempo inteligentes, curiosos/as, com espírito questionador e livres possam ler o que eu escrevi e pensar sobre essas coisas... com carinho,

Cláudio, o Mr. Magoo.