quinta-feira, setembro 25, 2014

O Pinhão Roxo e Dona Maria da Cabeça Branca


“Dona Maria da Cabeça Branca”. Era assim que minha bisavó, também de nome Maria e também de cabeça branca pelo tempo contado nos cabelos, costumava se referir àquela senhora branca, de idade bastante avançada que nos últimos anos de sua vida não enxergava mais. Perdeu, por causa de uma catarata, a luz dos olhos. Mas, em compensação jorrava dela uma luz interior que rescendia em seus gestos, em sua voz, e na disponibilidade com que ela se colocava em auxílio dos outros. Eis que talvez daí, dessa luz, lhe viesse o título que minha bisavó lhe dava. Dona Maria da Cabeça Branca estava sempre lá para servir aqueles que a procurassem. Viessem de onde viessem, por indicação de quem soubessem, em busca de reza, benzedura ou remédio. Para picada de cobra (um ou outro, já que a coisa era muito rara naquela região já relativamente urbanizada lá pelo fim dos anos 80); para espinhela caída; mal olhado; peito aberto; erisipela, quebranto ou cobreiro. Fosse o que fosse.
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Acredito que - pelo histórico desse tipo de trabalho - Dona Maria da Cabeça Branca conhecia também as artes de “fazer descer a regra” em moças que se descuidaram com seus parceiros, no trato de suas intimidades e corriam o risco de que o atraso se confirmasse numa gravidez não planejada. Sobre isso nunca cheguei a conversar com ela - até porque isso não era "assunto pra homem". A minha procura por ela estava geralmente ligado aos cuidados da saúde da minha família. Minha mãe que se contorcia de dores no peito e nas costas; minha irmã com diarreia e moleza no corpo, minha bisavó com uma ferida e um vermelhidão logo acima do tornozelo. Eu mesmo, com uma dor na altura do estômago, que parecia fome, mas que não parava por mais que eu me alimentasse normalmente. Para todas essas mazelas a intervenção de Dona Maria da Cabeça Branca era resolutiva, gratuita e universal, - muito antes de haver qualquer coisa parecida com Estratégia ou Programa de Saúde da Família. Antes inclusive de haver qualquer coisa parecida com Sistema Único de Saúde. Nesses tempos, é bom lembrar, a saúde era direito devido apenas aos trabalhadores de carteira assinada ou aos servidores públicos. Aos demais integrantes da população saúde era uma caridade. E essa caridade, dona Maria da Cabeça Branca fazia como quem realiza o seu dever. 
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Quando eu chegava em sua casa às pressas, me debruçava sobre a metade inferior da porta, parava um pouco para tomar fôlego, depois de ter subido as escadarias da rua Alto do Bambuí,  trotando sobre os degraus de três em três. Lá estava ela, cuidando da lida. Mesmo cega, ela cuidava de sua própria casa, um puxadinho de três ou quatro cômodos nos fundos da casa do filho. Este filho morava com a mulher e mais cerca de 08 (oito filhos) com idade que variavam de 04 a vinte e poucos anos. Dona Maria era respeitada por todos. Por uns mais que por outros, já que eles variavam muito em suas formas de obedecer. Todos sabiam que tinham que respeitar os mais velhos, mas cada um respeitava do seu jeito. Daí que a lista de queixas e comentários sobre a conduta dos meninos, acabava se registrando de modo enviesado. E o viés construía os “currículos” de cada um: “Paulinho era tão educado”; “Ivan, estudioso”; “Sandro, briguento” e “Clênio, desbocado”. A repetição desses rótulos acabava ocultando o fato de que um era muito fechado; o outro, orgulhoso; aquele outro cheio de amigos, e este último, altamente prestativo. 
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Mas a vida desses rapazes, que viviam sob a lei tradicional de um pai honesto, trabalhador e sisudo e uma mãe doce, acolhedora e desautorizada é material para outras crônicas. O que minha memória - e a minha memória é detalhista, ainda que não seja muito confiável - põe em destaque hoje é a luz interior de Dona Maria da cabeça branca em contraste com a luminosidade verde do meu pinhão roxo.
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O pinhão roxo que brilha no quintal de minhas memórias, e que antes emprestava seus galhos para formar um tipo de iruquerê nas conjurações e benzeduras de Dona Maria da Cabeça branca, é da mesma espécie que verdeja hoje no meu quintal e atrai os olhos da minha filha descabelada. Esse pinhão roxo que viceja no meu quintal e conjura em mim essas lembranças abençoadas é irmão de origem e talvez de destino de outras plantas que, como ele, guardam cada uma a sua ciência. A samambaia, o imbé-menino, comigo-ninguém-pode a espada de São Jorge, e tantas outras pelo Brasil a fora, pela mata a dentro. Elas, com sua sabedoria silenciosa, suas memórias indeléveis e o poder vital que carregam dentro de si, herdarão o mundo, quando formos todos homens e mulheres de cabeça branca. Se é que chegaremos a ser.



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obs.: os nomes das pessoas são reais, mas como já disse:
minha memória é detalhista, porém não é confiável.

quinta-feira, maio 22, 2014

Eu, Cláudio... nem imperador manco nem pai ausente; simplesmente eu.

21 de maio de 2014 às 17:55



Em 1972, quando minha mãe pronunciou meu nome no mundo, ela achou por bem que eu fosse chamado de Cláudio. O mesmo nome pelo qual era chamado o meu pai. Mas, segundo ela, o meu nome tinha mais a ver com o do senador romano conhecido por Tibérius Cláudius, feito imperador entre um assassinato e outro, por manter-se à margens - ou à sombra - das disputas grandiosas entre Júlios e Césares... estando num pequeno espaço - como se diz lá onde eu nasci: num "imprensado" entre  Calígula e Nero.
O fato de meu pai se chamar Cláudio (como aliás, também se chamava o pai do imperador), na versão de minha mãe, era mera coincidência. Há quem tenha motivos para duvidar, mas minha mãe tinha uma queda pelo teatro e o tal imperador já era conhecido (bem mais que o meu pai) de um romance literário publicado em 1934, tão famoso que virou série da BBC em 1976  (quando eu já tinha 4 anos, portanto não corrobora propriamente a versão materna, mas demostra que o personagem era bem conhecido). A primeira imagem que tive do imperador Cláudio, me veio em uma cena de algum filme (Calígula?) na qual ele se espremia assustado entre a morte de um imperador e a ascensão de outro.

Encontrei o livro [Eu, Claudius, imperador - de Robert Graves] numa biblioteca popular- A Sala de Leitura Gilberto Freyre, mantida na época por um vereador de Recife (Prof. Rafael de Meneses?). Mas não terminei de ler... acho que não gostei de saber que por conta de um dos defeitos do imperador, o nome Cláudio estava associado ao verbo claudicar - que significa pisar em falso, mancar, coxear. A propósito, há referências sobre um outro Cláudio, o coxo, na Bíblia mencionado como o homem que recebeu Maria e José no estábulo de sua estalagem na noite em que Jesus nasceu (curiosamente, há referências também ao fato de que antes de ser Imperador Tibérius Cláudius teria sido cuidado por um tratador de mulas). Mas, isso já é digressão.  Encontrei o meu pai [que não vivia com minha mãe] algumas vezes antes, durante minha infância e adolescência, mas a questão dos nossos nomes nunca esteve na pauta de nossas conversas. Se ele tinha aquilo como uma homenagem, não me pareceu nnca que se sentisse mais agradecido ou honrado. Nessas conversas eu, Cláudio, filho, levava mais em conta o fato de que havia mais distância entre mim e meu pai homônimo do que entre mim e o imperador manco.

Essa identificação com o Cláudius imperador gago, manco e medíocre, espremido entre Nero e Calígula, na medida em que refletia um sentimento de distância em relação ao meu pai, um eloquente jornalista, dirigente da Associação de Imprensa de Pernambuco, bem conhecido no meio jornalístico da sua época, esteve de certo modo no centro de minhas primeiras conversas com Ciro, o terapêuta que tive a felicidade de conhecer no curso de Psicologia da Federal de Pernambuco. Hoje, quando completo 42 anos  aquelas primeiras conversas me voltam à cabeça (crise da meia idade? - em tempos de internet essa crise deveriam vir por vota dos vinte, né?)

Essas conversas da terapia, por um tempo ao menos, giraram em torno da questão da ausência(?) de meu pai e da falta que ele não fazia, ou que eu não me permitia sentir, talvez graças à heróica presença da minha bisavó que foi - em termos winnicotianos, uma mãe suficientemente boa associada à presença forte e bem humorada de minha mãe. Meu pai, que tinha lá suas realizações e seus méritos, era menos importante pra mim que o tal imperador coxo que governou o imperio romano entre anos 40 e 50 d.C. (mais uma vez a dezena temerosa). O imperador que puxava de uma perna e gaguejava, além de ser inexpressivo entre os outros imperadores a quem ele sucedia e antecedia, me parecia uma influência pessoal mais negativa do que o meu pai, que além de ter mantido com minha mãe uma relação sem grandes compromissos, mantinha comigo uma relação de contatos ocasionais e um profundo distanciamento.

De qualquer maneira, era como se a mancada de meu pai fosse menos importante que a gagueira e claudicância do imperador para definir quem eu poderia ser. E esse desequilíbrio entre a importância das falhas de um imperador romano e a falta não experimentada de meu pai ausente, dava-se curiosamente num período de minha vida em que eu participava de um programa de extensão universitária voltado para promover o envolvimento de jovens pais com a gravidez, o parto e o cuidado de seus filhos, o Programa de Apoio ao Pai - que viria a se tornar a ONG Papai.

Nesse percurso, a terapia com Ciro - que não pretendo relatar em detalhes aqui - e a experiência de trabalho no Papai foram muito importantes para que eu elaborasse essa questão de um modo que acredito ter sido muito saudável. Para o imperador, para meu pai e, sobretudo, para mim.

Do imperador, que até pouco tempo, eu só sabia que era gago e manco, fiquei sabendo também que foi um estadista muito competente com um histórico de grandes realizações:

"Cláudio foi um brilhante estudante, governante e estrategista militar, além de ser querido pelo povo. O seu governo foi de grande prosperidade na administração e no terreno militar. Durante o seu reinado, as fronteiras do Império Romano foram expandidas, produzindo-se a conquista da Britânia. O imperador tomou um interesse pessoal no Direito, presidindo juízos públicos e chegando a promulgar vinte éditos por dia.(...)
"Cláudio demonstrou ser um administrador capaz e um grande promotor de obras públicas. Durante os treze anos do seu governo, o Império Romano assistiu à construção de numerosas obras públicas, tanto na capital quanto nas províncias." 
 "Cláudio preocupou-se especialmente do transporte. Construiu canais e estradas por toda a Itália e pelas províncias. De todos os canais destaca-se o que construiu do rio Reno até o mar e, quanto às estradas, foi muito importante a que ligava Itália e Germânia, ambas começadas pelo seu pai,"
 ...Um dos seus éditos mais famosos faz referência ao status dos escravos enfermos: Os donos abandonavam os seus escravos no templo de Asclépio para falecer, e depois reclamavam-nos se sobreviveram. Cláudio ditou que os escravos que se recuperassem desse tratamento ficariam livres. E mais, os donos que escolhessem matar o escravo em lugar de tomar o risco de abandoná-lo desse modo seriam acusados de assassinato.
(http://pt.wikipedia.org/wiki/Cláudio)

De meu pai - com quem, desde que posso lembrar, sempre mantive contatos raros e superficiais - guardei como relicário uma cópia autografada do único livro que ele chegou a publicar (na verdade, um catálogo publicitário com ficha técnica e contato de vários jornalistas atuando na imprensa pernambucana) e uma nota de obtuário publicada em 2001 na página "Vida Urbana" do site do Diário de Pernambuco, que diz o seguinte:

Jornalista sepultado em Santo Amaro (Edição de Segunda-Feira, 5 de Novembro de 2001)
Foi sepultado ontem, às 17h, no cemitério de Santo Amaro, o corpo do jornalista Cláudio Miranda. Ele trabalhou na redação do DIARIO DE PERNAMBUCO, na década de 80, e na mesma época atuou no Jornal do Commércio. No final da década de 90, o jornalista passou a ser editor de O Passageiro, um veículo de circulação bimensal, em tamanho tablóide, com linha editorial que funcionava como um elo entre população e Governo.
(http://www.old.pernambuco.com/diario/2001/11/05/urbana6_0.html)

O tablóide mencionado na nota foi um projeto que ele chegou a partilhar comigo. Lembro de rabiscar uma ilustração para a primeira edição. Que não cheguei a ver finalizada. Mas fiquei feliz ao saber que o projeto estava em desenvolvimento.

De mim mesmo, com quem tenho mantido contatos frequentes de quem procuro estar sempre muito próximo, guardo imagens mais ou menos certas e também equivocadas. Sei de meu currículo e de minha vida. E sei que esta última não se resume àquele outro. Sei dos mitos que me fazem querer e temer ser como sou. Sei dos meus desejos, dos meus projetos e de minhas frustrações (creio um pouco que eles também sabem de mim). E sei que saber tudo isso não é suficiente para estar seguro de uma vez por todas sobre quem eu serei daqui por diante. No máximo, posso dizer que não sei quem vou ser. Ou posso dizer que sei quem não vou ser (pois já não tenho sido): não serei Cláudio, o imperador manco nem serei Cláudio, o pai ausente. Mesmo que cada um dos dois tenham tido seus lados positivos, eu continuarei sendo eu mesmo. Colocando mais presença onde eu tiver sido ausente e corrigindo minhas próprias mancadas.