Fernando, alguns de meus amigos me chamam de Mr. Magoo (por causa da miopia e
do carisma), outros me chamam de Cláudio mesmo. Eu tenho idade para ser seu pai. Mas, escrevi este texto para você, movido
por um sentimento de irmandade que sei que é frágil de um ponto de vista racional, mas sinto como forte do ponto de
vista histórico, político e afetivo. Não sei se você será capaz de
compreender a complexidade dessa relação hoje. No tempo em que eu era você, eu
também não a compreendia.
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No tempo em que eu era você, se
alguém me dissesse o que eu te digo hoje, é possível que eu desse de ombros,
virasse as costas. É verdade que naquele tempo, ninguém me disse algo assim. De qualquer
forma, eu vou falar com você hoje. Porque hoje eu não sou mais você; eu aprendi
a ser outra pessoa. E assim, como eu aprendi, com o tempo, espero que você
também aprenda. Afinal, o tempo é maior que nós dois.
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É por acreditar no tempo, e nas
transformações que ele realiza, que eu queria falar com você. E queria que
minha fala soasse carinhosa, sem rancor, sem revolta. Não escrevi isso para “esfregar
nada em sua cara”, muito menos verdades. Eu queria mesmo era saber de sua vida, queria conhecer
você melhor, para além do que já sei de você pelo que há de você em mim. E para
além do que já sei de você pelo que há de você em meu querido irmão. Que, aliás,
parece um pouco com você. Meu irmão é como você: bonito, inteligente e
negro. Acho que foi por causa dessa
semelhança entre você e meu irmão (mesmo que ele não seja mais tão jovem quanto você), que eu resolvi me dirigir a você da forma
mais carinhosa possível.
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Fernando, você não é o primeiro, nem o mais importante
negro a ser usado por aqueles que gostariam de manter as coisas como as coisas
sempre foram. O passado remoto e a história recente estão cheios de exemplos de
alianças entre brancos exploradores e negros escolhidos entre os explorados,
para facilitar a exploração. A colonização africana foi feita dessa forma em
muitos países. A manutenção da escravidão no Brasil se apoiou nisso. O nosso futebol
e a teledramaturgia global pipocam de exemplos, com suas realezas e suas
globelezas. Pessoas negras cooptadas para manutenção do racismo e da
discriminação fervilham desde o tempo em que as mídias não eram tão virtuais...
você, Fernando, definitivamente não é o primeiro, nem o mais importante negro a
chacoalhar uma banana na internet gerando mais lucros e risos para grupos de
brancos ricos.
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Fernando Holiday no vídeo "Como se defender com uma banana" |
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Não vou fingir que não fiquei puto de raiva
quando assisti os seus vídeos, comecei por aquele em que você critica as cotas (e
as gostosas - eu também nunca dei muita sorte com elas na sua idade), e fui
vendo os outros, em que você fala mal dos estudantes de humanas (como se a maconha
fosse desconhecida pelo pessoal das exatas ou das engenharias); em defesa do
porte de armas para os “cidadãos honestos” você protestou… comendo uma banana?!?
(onde eu já vi isso?!?!); a ironia com a Luciana Genro do PSol (podia ter sido
com o Jean Willys, porque ele sim, entrou em conflito com as mulheres negras,
mas você não sabia, né?). E o trocadilho com o Genoíno (não foi você que fez, aquela piada, né?). Então, claro que fiquei ofendido quando assisti aos seus
vídeos. Mas, mais forte do que a revolta foi a tristeza que me abateu quando vi naqueles vídeos, com você… o menino que eu já fui. Alienado de sua própria condição de
negro, usado como o cavalo de um egun ingrato, que não vai lhe deixar nem
mesmo o gosto da festa na boca quando abandonar o seu corpo.
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Quando vi você descascando aquela
banana, sem saber o que fazer com ela, a não ser comê-la em frente à webcam...eu
fechei os olhos e chorei. Chorei como quem chora a morte de um irmão querido.
Não estou fazendo uma metáfora, eu realmente chorei de tristeza por ver a que
ponto de alienação pode chegar um jovem negro, que poderia ter sido eu, ou o meu
irmão. E em razão dessa tristeza que resolvi escrever esta carta pra você, com
carinho. Porque, mais do que revoltado, fiquei triste e desapontado.
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Fernando, meu irmão, eu não
esperava isso de você. Na verdade, sei que isso não veio de você. Assim como
não veio de mim a agressão que eu pratiquei várias vezes contra a menina negra
que morava na minha rua. Eu não disse que já fui você? Pois é, quando eu era
você, nem negro eu era. Eu era ‘moreno’. Negra era a minha vizinha Conceição
que eu xingava de macaca, toda vez que apanhava dela. Negro era o meu vizinho
Walmir que me contava todas as piadas de negro que eu conhecia. Fernando, você,
Walmir e eu, quando repetimos com nossa voz o desprezo por coisas que poderiam
dar aos negros um lugar de destaque no mundo; quando repetimos com nossa voz o
discurso de desprezo pela identidade dos negros; quando nos colocamos a serviço
daqueles que querem que as coisas voltem a ser como eram, segundo a ordem
racista; quando agimos assim, isso não vem de nós. Isso passa através de nós,
que somos usados como carcaça vazia, por aqueles que continuarão sorrindo e
enriquecendo às custas de nosso suor, de nossa carne negra, de nossos lábios
grossos e de nosso cabelo crespo (cabelo que eles fazem questão de manter bem
aparado).
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Fernando, no tempo em que eu era você
não haviam cotas ou qualquer política de ação afirmativa. Não havia ao meu
redor, qualquer discussão sobre o mal do racismo, ou sobre a violência contra
os negros. E eu cresci sem ouvir uma palavra qualquer sobre a possibilidade de
um negro sentir orgulho de si mesmo. Por isso, quando tive contato com as
primeiras discussões sobre identidade racial, ações afirmativas, luta pela
igualdade entre negros e brancos, ou direitos civis para afro-descendentes, achei
tudo isso “uma grande besteira!” Afinal, somos todos seres humanos, e o
humanismo seria o único “ismo” que valia a pena defender. Todos os outros, como,
por exemplo - e principalmente - o “feminismo” eram fruto de cegueira
intelectual. Assim como você, eu já desprezei esse discurso de “orgulho negro” “Orgulho
de quê ?” - eu dizia - “Eu não fiz nada
para ser negro!”
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É, Fernando… eu já falei assim como
você. Mas, com o tempo, eu fui ouvindo o que aquelas pessoas - em sua maioria mulheres
e negras - estavam me dizendo... por que será que elas insistiam naquilo? “identidade
negra”, “100% negro”; “representação de negros”; “a vida das mulheres negras”; “cotas
raciais”; “história da África”; “artistas negros”; “cientistas e pesquisadores negros”, “a pele negra”, “o preconceito contra o negro
na linguagem” …mas, que obsessão! Com o passar
do tempo, fui ficando curioso para saber o que aquilo significava... Tenho
esperança de que você seja um jovem com curiosidade. Pois, como disse Tom Zé: “o
que cura a humanidade é a curiosidade”.
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Espero que você use a curiosidade para se perguntar e perguntar aos que te rodeiam: Você é mesmo contra o estatuto do desarmamento? Você tem mesmo esse ódio da Dilma ou só queria ser engraçado? Você acha mesmo que são as cotas raciais que humilham os negros? Onde você leu que Zumbi dos Palmares era igual a Hitler? Olhe ao seu redor, você está mesmo rodeado de pessoas iguais a você? E mais importante: quem colocou no roteiro a ideia de você comer uma banana? E por que essa cena virou o título do seu vídeo?
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Espero que você use a curiosidade para se perguntar e perguntar aos que te rodeiam: Você é mesmo contra o estatuto do desarmamento? Você tem mesmo esse ódio da Dilma ou só queria ser engraçado? Você acha mesmo que são as cotas raciais que humilham os negros? Onde você leu que Zumbi dos Palmares era igual a Hitler? Olhe ao seu redor, você está mesmo rodeado de pessoas iguais a você? E mais importante: quem colocou no roteiro a ideia de você comer uma banana? E por que essa cena virou o título do seu vídeo?
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Como já disse, acho que foi por causa da semelhança entre você e meu irmão - entre você e eu - que eu resolvi me dirigir a você da forma mais carinhosa possível. Embora tenha idade para ser meu filho, você me lembra mesmo o meu irmão. Bonito, inteligente e negro. Só que o meu irmão, ao contrário de você, quase não discute política. Ele não saberia a diferença entre “direita e esquerda” a menos que estivesse falando da sinalização de trânsito. Mas, você fala como se conhecesse a “esquerda” profundamente... colocando no mesmo pacote, o MST, Dilma, e os professores que dão aula de “marquicismo”... aliás, você parece conhecer mais a esquerda do que Dragon Ball ... já que virou motivo de piada quando errou o Kamehamehá.
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Fernando, meu filho; Fernando, meu irmão, eu espero
sinceramente que você leia o que eu escrevi pra você com carinho (estarei sendo
ingênuo?). Ao menos fica a esperança de que outros jovens negros e negras, assim como
você é hoje - assim como eu já fui - sem consciência de sua condição racial, mas ao mesmo
tempo inteligentes, curiosos/as, com espírito questionador e livres possam ler o que eu escrevi e
pensar sobre essas coisas... com carinho,
Cláudio, o Mr. Magoo.
Cláudio, o Mr. Magoo.