Eu acho impressionante o quanto um ser humano pode ser ignorante do mundo que existe, pulsante, ao seu redor e ainda assim, dar-se por satisfeito com aquele universo tão pequeno que pensa conhecer… Muitas vezes esse mundo infinito e pulsante poderia ser acessado por um ponto tão próximo de nós, que ficamos surpresos quando acidentalmente o encontramos, bem ali, do nosso lado.
Tem um conto lindo de Borges que eu penso que é sobre isso: O Aleph. Nele o autor fala da existência de um ponto de vista mágico, a partir do qual um observador, que tenha a sorte de localizá-lo e olhar através dele, poderia contemplar toda a realidade de uma só vez. Todos os lugares e momentos que existem poderiam ser vistos a partir de um Aleph. Um buraco de fechadura, ou um olho-mágico cósmico.
Não
lembro quando tomei conhecimento dos textos de Lélia Gonzales…
mas, sei que foi muito tardiamente, considerando que já faz tempo
que ela os escreveu, e considerando a importância deles para minha
formação. Através do texto de Lélia Gonzales tive acesso a um
autor que ela cita. MD Magno, um psicanalista nascido em 1938. Ao
mencionar o texto dele, Lélia Gonzales disse que “Prá quem saca
de crioulo, o texto aponta prá uma mina de ouro que a boçalidade
europeizante faz tudo prá esconder, prá tirar de cena” Eu
curioso que sou, fui atrás e fiquei
espantado quando encontrei a vastidão da obra desse pensador branco
responsável pela renovação do
movimento psicanalítico no Brasil, um
saber até então acessado
apenas por uma certa elite intelectual, que
Lélia fazia questão de confrontar, entregando o ouro pra geral.
Lélia Gonzales é tipo um Aleph…
Outro Aleph, cuja obra
poderia nos oferecer uma mirada fantástica para um vasto universo,
está no trabalho de Fernand Deligny, um educador francês que
desenvolveu uma reflexão clínica e poética sobre a realidade de
crianças autistas e com deficiência severa. Seus conceitos
cartográficos, suas tramas e rizomas influenciaram o pensamento de
outros demiurgos como Felix Guatarri e Gilles Deleuze, há muito já
conhecidos da psicologia brasileira.
MD Magno conectado a Lélia Gonzales; ou Deleuze e Guatarri conectados a Deligny, funcionam cada um e cada uma como o Aleph de Borges, permitindo ao observador que tenha a sorte de conhecê-los o acesso a mundos infinitos e pulsantes de conhecimentos que certamente nos tornariam um pouco menos ignorantes da realidade ao nosso redor.
Mas, isso
não é apenas sorte. É, em grande parte, uma questão de saber olhar cuidadosamente nas
proximidades do nosso próprio mundo. É sobre ser capaz de manter a escuta atenta, realizar
a leitura de textos como estes aqui, até o final… Podemos dizer que tem sorte alguém que acha umas notas de dinheiro enquanto caminha distraidamente pelas ruas da vizinhança. Mas, se esse alguém não tivesse a iniciativa de caminhar pela própria vizinhança, não teria como aproveitar essa sorte. Então, é sobre aceitar que o Aleph, esse ponto de acesso a um mundo novo, pode estar muito próximo de nós.
Eu por exemplo, para ter contato com a obra de Lélia Gonzales e de Fernand Deligny não precisei ir a lugares famosos e localizar pessoas renomadas na vitrine do mundo. Não precisei procurar nos grandes centros como Rio e São Paulo, nem tive que ir a eventos disputados por celebridades nas redes sociais ou nos palácios de livros. Eu tive a sorte e o cuidado de reconhecer pessoas próximas como verdadeiros pontos de acesso a um mundo novo de conhecimento.
Pessoas
como Alex Ratts - que nos conecta
à
obra de Lélia Gonzales e Beatriz Nascimento, ou pessoas como Patrick Oliveira, que me conectou
à
obra de Fernand Deligny, de Neusa Santos e Virgínia Bicudo.
Alex Ratts é poeta e ilustrador, ativista em Direitos Humanos ligado à luta pela igualdade racial e LgbTQiAp+ arquiteto e urbanista, geográfo, antropólogo pesquisador e professor, com uma experiência de vida e uma capacidade reflexiva que faz dele próprio uma mirada excepcional para outras realidades possíveis. Além disso, Alex é um estudioso de autoras como Lélia Gonzales e Beatriz Nascimento, tendo escrito livros biográfico sobre ambas, nos permitindo ver nas duas essa mesma característica de ponto de acesso a mundos conceituais e experimentais...
Patrick de Oliveira Silva é sacerdote de Ifá (Babalawò Ifáyomi), com dois livros publicados sobre o assunto, filósofo, psicanalista lacaniano, psicólogo, especialista em políticas de álcool e outras drogas e dependência química, Mestre e doutorando em Antropologia Social; seu percurso de vida e de leituras o colocou em contato com as políticas públicas de álcool e drogas, em especial nas comunidades de terreiro, nas periferias do país. Estudioso de Religião e Psicanálise tem feito reflexões críticas sobre a necessidade de epistemologias mais condizentes com a complexidade da realidade contemporânea, fora do modelo imperialista e eurocêntrico. Além de dar repercussão, na sua prática clínica às questões levantadas por Virgínia Bicudo e Neusa Santos sobre o impacto das experiências relativas ao corpo negro na análise, Patrick tem levado para a academia um pouco da poeira e do cheiro de ervas que vem dos terreiros, consciente do valor de verdade que a floresta carrega em seus ensinamentos... (consciente, ou talvez em transe.)
Tanto Alex Ratts, quanto Patrick Silva são - eles mesmos - como o
Aleph de Borges, preciosos
portais de ampla visão para quem souber se aproximar deles. Para quem souber reconhecer os
seus trabalhos como genuínos nascedouros de luz, irradiando conhecimento e experiência de vida bem aqui, do nosso lado; ligados, por seus próprios estudos, a uma rede intrincada de saberes e experiências que deságuam num oceano
infinito que poderia diminuir minimamente a nossa enorme ignorância. Funcionam todos esses autores como pontos de mirada, por onde podemos contemplar a nossa ignorância e deixar que ela extravase.
Então,
confie na sorte, mas olhe atentamente ao seu redor. Encontre os
pontos de acesso que poderiam te levar a um mundo novo de
conhecimento.
Se Alex e Patrick não estão por aí, do seu lado, quem está? Pergunte-se quais são os Aleph que você não está encontrado, talvez por não procurar nas proximidades...
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Para reduzir nossa ignorância:
JorgeJuiz Borges (1949). O Aleph. (Livro)
AlexRatts (2007): Eu sou atlântica. Sobre a trajetória de vida de Beatriz Nascimento. (Livro)
Patrick de Oliveira Silva (2021). Os ensinamentos que vêm da floresta (livro). //
(dissertação) Transe Místico no Candomblé de Rito Nagô [manuscrito] /dissertação de Mestrado /PPAS/FCS/UFG.
Beatriz Nascimento. Uma história feita por mãos negras. (livro org. por Alex Ratts)
LéliaGonzales (1984): Racismo e sexismo na cultura brasileira. (texto em revista)
Magno, MD.(1980/2008). Améfrica Ladina. Introdução a uma abertura. (Texto On line).
Fernand Deligny, (2015). O Aracniano e outros Textos. (Livro)