Por Cláudio H. Pedrosa
(imagem: https://missgermany.de)
A História da jovem Domitila é obviamente maior do que o meu ponto de vista permite ver, é só olhar para o seu nome, que é uma referência à sindicalista boliviana, Domitila Barrios Chungara. (nascida em 7 de maio de 1937).
(Foto: Gabriel Rodriguez/ Fonte:www.umsa.bo)
Mas, do meu ponto de vista, essa história começa com o encontro entre o pai e mãe de Domitila. Ademilson & Roberta, um casal
interracial de professores, ativistas pelos direitos das crianças, na
periferia de Recife...
Conheci os dois uns anos antes de Domitila, a Miss Alemanha 2022, nascer. Eu tinha algo em torno de 12 anos... foi num carnaval. Lá pelo comecinho dos anos 80. Ademilson, organizou uma La Ursa com as crianças do Córrego. Gente, lá em Recife o que mais tem é Córrego (...do Ouro, do Euclides, do Genipapo, do Botijão.. Enfim, eu sou do Córrego, e a família de Domitila, também). Córrego ou Alto… Morro mesmo, só tem um, visse? - o Morro da Conceição. Onde, aliás, Roberta morava antes de ir viver com Ademilson… Gente que desce desses dos altos e vai pelos córregos sempre é correria, viu?
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Mas, como eu ia dizendo, Ademilson e Roberta, juntaram a criançada que tava à toa ali pelo Córrego e montou uma troça de carnaval. Uma LaUrsa. Com a ajuda dele, fizemos tambores, com sacos de leite presos, em latas sem fundo, por borrachas de câmara de ar. O som lembra um tambor de verdade, daqueles de coro sintético... Saímos pelas ruas da comunidade. A batucada, cantarolando "a La Ursa quer dinheiro, quem não der é pirangueiro!" "Tan-dan-dan! Naquele tempo eu não sabia disso, nem sei se eles tinham planejado aquilo. Mas hoje eu diria com certeza que aconteceu ali foi "uma oficina de percussão" aliás, várias oficinas. Segue a história…
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Lembro até hoje. O que ficou na parede da memória. Lembranças fortes daquele dia, como o fato de ser a primeira vez em que eu fazia parte de um bloco de rua, como é uma La Ursa, porque, até então, eu só tinha sido plateia. Espectador... olhava admirado de longe, quando passava uma dessas la Ursa, ou mesmo um papa-angu, nas ruas do bairro. Naquele dia Ademilson, tinha me colocado, junto com todas aquelas crianças, exatamente no foco da folia. Ali éramos artistas de rua. É verdade que, depois daquele carnaval, eu conheci a apoteose na Escola de Samba Barões do Córrego, onde fui caboclinho, e até destaque como um Santos Dumont. Mas naquele dia da LaUrsa eu era um batuqueiro. E o meu tamborzinho feito de lata e saco de leite, vibrava forte, ao repique de uma baqueta improvisada.
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A lembrança mais forte que ficou mesmo, para além de outras lembranças, foi a experiência de solidariedade que vivi quando o percurso terminou. Durante o circuito que passamos de casa em casa, driblando os ataques de mela-mela, e jatos de água que jogavam das lanças feitas de cano de PVC, várias vezes o coro puxando "pirangueiro" era silenciado pelo suborno de uma doação, geralmente em moedas... que gerava uma gritaria "é gente fina!" ... após vários ciclos de "a La Ursa quer dinheiro, quem não der é pirangueiro" Ademilson tinha se encarregado literalmente de um saco de dinheiro... Findado o circuito, nos reunimos no quintal da casa de seu pai. . Contou o dinheiro e distribuiu todas as moedas em partes iguais para todo mundo que participou. Enquanto dividia o dinheiro, falava para a molecada sobre a importância de dividir por igual, sem discutir quem tinha feito o que, quem era mais importante... igual, entre todos. Até hoje, quando vejo Ademilson ou Roberta sendo classificados nos jornais de "empreendedores" sociais, eu rio comigo mesmo... porque aquele casal de "empreendedores" pra mim, serão sempre lembrados como um tipo de comunistas... ou no mínimo, socialistas.
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Algum tempo depois daquela atividade, no mesmo terreno da casa do pai de Ademilson, onde construíram a casa para viver o casal, (aliás, à medida em que a família ia crescendo, o número de casas no terreno ia aumentando também, igual aos compound de um povoado Yorubá). Primeiro Adelma, mãe de um dos meus melhores amigos, Feliciano, mais conhecido como "Maikel" garoto brincalhão, assassinado pela violência urbana. Depois Alcione, a filha bem empregada, a mulher mais elegante daquela rua, depois Dedêco, o Policial Militar mais simpático e boa gente, que eu já vi... casou-se e construiu sua casa ali, no mesmo terreno. Também Ademilson com sua esposa Roberta. (Posso estar confundindo a ordem das construções. Mas o fato é que pouco a pouco, o espaço foi sendo ocupado pelas filhas e filhos de Dona Alzira e seu Geraldo. Ali naquela pequena cidadela ancestral, eles organizaram um projeto social para desenvolver atividades educativas e de geração de renda voltado para ajudar "crianças carentes da comunidade" ou seja, todas as crianças da comunidade, já que a comunidade toda era "carente" de certa forma…
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Sob a ori-entação dos dois professores, as crianças mais escolarizadas atuavam, colaborando com aquelas que nunca tinham ido à escola... Vamos nos lembrar que isso foi antes da Constituição, antes do SUS e antes do Estatuto da Criança e do Adolescente. Nessa época, Ademilson e Roberta reuniam crianças pobres que tinham casa, família, almoço e escola. E nos convidava a agir conjuntamente com ele, no auxílio de outras crianças pobres que não tinham nem uma coisa nem outra. (Depois descobri que os teóricos chamam isso de "educação pelos pares''). Devido a seus contatos com outras instituições como o Centro Josué de Castro, e uma organização humanitária Alemã, o projeto que antes se resumia a aulas de reforço, prato de comida, e brincadeiras de roda e gincanas, foi crescendo e ganhou o mundo, abrindo uma janela social bem antes do tal Windows abrir-se para consumir nossa vida e inteligência, com seus "clica e arrasta".
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A maioria de nós, à época, não entendia muito bem o funcionamento daquela organização. Centro de Apoio ao Menor e à Mulher...CAMM (de novo, na época não existia ECA, estava em voga o Código de menores...só depois, com o advento do ECA, e com o crescimento da discussão sobre igualde de gênero, que "menor e mulher" passaram a ser Menino e à Menina, mudando as palavras e mantendo a sigla, no que passou a ser o Centro de Atendimento a Meninos e Meninas). Alguns de nós, adolescentes ali, éramos meio ressentidos ou chateados, porque parecia que os nossos mentores privilegiavam as crianças mais "encrenqueiras", estavam sempre botando no colo, dando desconto, gastando tempo... passando a mão na cabeça dos pestinhas. Enquanto para nós, os educados, meninos e meninas de família, os que não eram "maloqueiros" sobravam exigências e cobranças... Na época parecia injusto... Mas hoje sei que os teóricos chamam isso (eu chamo isso) de "ação afirmativa" e de equidade... (Coisa de cristão esquerdista, que acredita nas pessoas). E as cobranças, que nós achávamos injustas, eu acredito hoje, que era baseadas na confiança que tinham em nós. Era uma tentativa de nos conscientizar das nossas próprias capacidades... Muitos de nós, éramos capazes. Mas, a gente só não acreditava que era. E eles acreditavam... E pelo que sei continuam acreditando com muita força… Alguns diálogos de que me lembro:
Ademilson pintando um letreiro no muro pelo lado de dentro, me chamou pra perto dele, pra conversar…
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Começou falando uma coisa "aleatória" sobre o disco de Newton, que eu não conhecia na época, disse que era um disco pintado com todas as frequência de cores visíveis, lado a lado. E quando o disco girava rápido, um observador podia ver as cores se fundindo num branco, tornando impossível distinguir entre azul ou vermelho... Depois esticou a conversa observando o fato de que eu estava me envolvendo com diversas atividades, ali e aparentemente estava tendo dificuldade de conduzir todas elas... Eu era do grupo de teatro, responsável pela gibiteca; era do controle de fabricação e venda de picolés, do grupo de alfabetização e reforço escolar da tarde, e estava planejando dar um curso de desenho. Não que na ocasião eu recebesse aquilo como o sábio conselho que era. Na hora, só pensei que estava sendo criticado e isso não era bom (geminiano sensível é osso!).
Hoje vivo dizendo a mesma coisa pra mim: sossega rapaz. Não pegue tantas coisas pra fazer que vai dar branco! Lembre-se do disco de Newton. (risos).
mais de 250 páginas, com lindas gravuras coloridas em couchê, capa dura com figuras em baixo relevo na lombada, e logo de cara na página de rosto, um homem branco típico, com a mão em concha na frente da boca, e um mico em suas costas, vestindo uma tanguinha de leopardo, conclama os animais da Savana africana... Numa perfeita ode ao machismo colonial, (supondo que não era um elogio à estética gay do Village People). Enfim, inspirado por esse livro, aliás pelos vários livros dessa coleção, eu que ainda não tinha entrado na adolescência direito, já tinha escolhido o nome da criança que eu pensava em nomear. E estava contando para Roberta, mãe de Domitila. O nome que eu escolhi? John Clayton Greystoke.
Ela não gargalhou na minha cara nem me expulsou do projeto. Só perguntou delicadamente, se eu não teria um nome mais brasileiro. Para ela, parecia um nome muito, assim, “americanizado”... Imagina o que ela diria se soubesse que antes de entender o que era “pensamento colonizado”, eu havia trocado os nomes de John Clayton para Kal-el, Zor-el e Koryander. (Todos personagens alienígenas de revistinha de super-heróis dos Estados Unidos). E o que será que ela diria ao saber que hoje eu tenho três filhas. E todas com nomes da língua portuguesa. Luísa, Beatriz e Teresa… é verdade que as duas mais velhas, não foram escolhas minhas. Eu só achei bom!. Mas, de alguma forma, a escolha de Teresa foi reflexo dessa consciência anticolonial. Claro que elas poderiam se chamar Ona-í ou Tampirawã-í... Mas aí já acho que eu estaria sendo hipócrita..
. (imagem: http://cammbrasil.org/)
Enfim, o fato é que muita coisa do que sei, muito de quem sou, aprendi naquele coletivo liderado por Roberta e Ademilson, mesmo quando não segui com eles na continuidade do projeto, que cresceu e mudou de local, mantive comigo uns ensinamentos e uns princípios. Algo já comum na minha família e naquela comunidade, mas que eles dois souberam catalisar e representar muito bem.
. (foto: Internet)
E mais do que isso, além de representar, eles conseguiram transmitir essa capacidade de representar nossa comunidade, a todo mundo que passou por lá. Inclusive a própria filha deles, Domitila, que leva adiante um legado de emancipação, e não o desejo colonizado, de se identificar com o Tarzan ou de batizar uma criança brasileira com nome de John Clayton Greystoke. Domitila, representando a tradição das periferias, impõe-se, ironicamente, no universo dos colonizadores, ostentando uma frase que a Europa entende "She's from the Jungle" para ali colocar à venda, numa perspectiva solidária, o produto do trabalho de artesãs da periferia de Recife. E dessa posição autoafirmativa, ela encontra uma janela, fora do Windows, nas telas das telenovelas (sim ela foi estrela de novela em alemão), e dentro das passarelas. Para, passando por elas, chegar ao inusitado título de Miss Alemanha. Sem abrir mão de sua identidade inicial. Uma verdadeira façanha!
Eu nunca imaginei que me sentiria tão bem representado por uma Miss.
(Fonte:instagram @domitila_barros)
Mas, o que me encanta nesse processo e que me faz ver uma conexão entre a revolucionária Domitila Barrios, e o bairro de onde veio essa jovem Domitila, o que me dá essa e a sensação de que essa Miss Alemanha representa toda a nossa gente, ao ponto de podermos comentar com orgulho: eita, sabe aquela Miss Alemanha? Eu conheci ela quando ainda era uma menininha, brincando no colo da mãe, carregada pelo pai… Algo mais me deixa feliz nessa história, além de saber que, no final, eu não tenho um filho chamado Clayton Greystoke, (obrigado, Roberta) …
(imagem: https://missgermany.de)
O que me deixa feliz de verdade é saber que Domitila, mesmo indo para a Europa nas tranças da ironia: "She is from the Jungle" e ganhando o concurso de Miss Alemanha, ela mesma não mudou muito. Né? O que mudou muito foi o concurso de Miss Alemanha. E o Mundo.
P.S.
Enquanto eu estava pensando se postava ou não esse texto, recebi uma mensagem de um dos meus maiores amigos de infância - maloqueiro de Córrego, igual a mim (igual a Maikel, tio mais novo de Domitila, morto pela violência urbana). Marquinhos viveu comigo aquela mesma época, e trabalha hoje na emissora de TV local (onde está o melhor Carnaval!), lá onde recebeu a ilustre visita de Domitila.
Fim da dúvida, resolvi postar (muito obrigado, Marquinhos... e, Domitila só faltou o autógrafo.) É nós!
(Fonte: arquivo pessoal)
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